revisión

Mulheres, feminismo e Terapia Ocupacional:

uma análise crítica

da literatura sobre

questões de gênero que

impactam a profissão

Recebido: 22 de fevereiro 2023 • Enviado para modificação: 17 de março 2023 • Aceito: 16 de maio 2023

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L. (2023). Mulheres, feminismo e Terapia Ocupacional: uma análise crítica da literatura sobre questões de gênero que impactam a profissão. Revista Ocupación Humana, 23(2), 72-87. https://doi.org/10.25214/25907816.1583

Women, feminism, and Occupational Therapy: A critical analysis of the literature on gender issues impacting the profession

Mujeres, feminismo y Terapia Ocupacional: un análisis crítico de la literatura sobre las cuestiones de género que afectan a la profesión

Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 1

Isabella Lima de Paula 2

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

1. Terapeuta ocupacional. Mestre e doutora em Psicología Clínica. Professora, Universidad de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. beth.lima@usp.br

.........http://orcid.org/0000-0003-0590-620X

2. Terapeuta ocupacional. Estudante de pós-graduação, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Instituto Nacional de Tecnologia e Saúde e Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Juventude, Cidade Ademar. São Paulo, SP, Brasil. isabelladepaulato@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-5242-6746

Resumo

O desequilíbrio de gênero está presente na Terapia Ocupacional desde o surgimento da profissão nos Estados Unidos da América, mas foi somente nas últimas décadas do século XX que este fato começou a ser problematizado. Este artigo apresenta uma revisão crítica de literatura que teve por objetivo sintetizar, analisar e discutir artigos que abordam a presença e o papel das mulheres e o impacto da segregação de gênero na profissão. A revisão foi realizada através de levantamento e identificação de material relevante na literatura de Terapia Ocupacional em espanhol, inglês e português sobre o tema, sem recorte temporal. Foram analisados e discutidos 29 artigos, sob quatro tópicos: concepção de gênero presente nos textos; mulheres e feminismo na história da Terapia Ocupacional; segregação de gênero: estereótipos femininos e cultura das mulheres; gênero e relações de poder: a luta pelo reconhecimento. As análises apontaram para a importância de recuperarmos as conexões com o feminismo que estavam presentes no surgimento da profissão. A perspectiva feminista pode fortalecer as bases teóricas e filosóficas da Terapia Ocupacional e ajudar a compreender e a enfrentar as iniquidades de gênero que atravessam a vida das terapeutas ocupacionais.

Palavras-chave: Terapia Ocupacional, divisão do trabalho baseada no gênero, feminismo, revisão

Resumen

El desequilibrio de género ha estado presente en la Terapia Ocupacional desde sus inicios en los Estados Unidos de América, pero fue solo en las últimas décadas del siglo XX que este hecho comenzó a ser problematizado. Este artículo presenta una revisión crítica de la literatura que tuvo como objetivo sintetizar, analizar y discutir artículos que abordan la presencia y el papel de las mujeres y el impacto de la segregación de género en la profesión. La revisión se llevó a cabo mediante la búsqueda e identificación de material relevante en la literatura de Terapia Ocupacional en español, inglés y portugués sobre el tema, sin corte temporal. Fueron analizados y discutidos 29 artículos, bajo cuatro temas: concepto de género presente en los textos; mujeres y feminismo en la historia de la Terapia Ocupacional; segregación de género: estereotipos femeninos y cultura de las mujeres; género y relaciones de poder: la lucha por el reconocimiento. Los análisis señalan la importancia de recuperar las conexiones con el feminismo que estuvieron presentes en el surgimiento de la profesión. La perspectiva feminista puede fortalecer las bases teóricas y filosóficas de la Terapia Ocupacional y ayudar a comprender y abordar las desigualdades de género que atraviesan la vida de las terapeutas ocupacionales.

Palabras clave: Terapia Ocupacional, división del trabajo basado en el género, feminismo, revisión

Abstract

Gender bias has been present in Occupational Therapy since its early years in the United States of America, but it was only in the last decades of the 20th century that this fact began to be problematized. This article presents a critical literature review that aims to summarize, analyze and discuss articles that address the presence and role of women and the impact of gender segregation in the profession. The review was conducted by surveying and identifying relevant material in the Occupational Therapy literature in English, Portuguese and Spanish, and no time frame was established. Twenty-nine articles were analyzed and discussed under four topics: gender concept in the texts; women and feminism in the history of Occupational Therapy; gender segregation: female stereotypes and women’s culture; gender and power relations: the struggle for recognition. The analyses pointed to the importance of recovering the connections with feminism present in the emergence of the profession. The feminist perspective can strengthen Occupational Therapy’s theoretical and philosophical bases and help understand and address the gender inequalities in the lives of occupational therapists.


Keywords: Occupational Therapy, gender-based division of labor, feminism, review

Introdução

A Terapia Ocupacional se estabeleceu como profissão no início do século XX, nos Estados Unidos da América. Pesquisas sobre a história da profissão têm relacionado seu surgimento às duas guerras mundiais, ao processo de industrialização, ao movimento de artes e ofícios, à filosofia pragmatista, ao movimento feminista e à entrada das mulheres brancas no mercado de trabalho (Frank & Zemke, 2009; Melo, 2015; Wilcock, 1998). No entanto, seu desenvolvimento e o esforço por alcançar reconhecimento no campo médico e científico enfraqueceu a presença do componente crítico, da filosofia e do ativismo político no campo profissional (Frank & Zemke, 2009; Wilcock, 1998), o que possibilitou a manutenção, sem crítica, da ideia de que a Terapia Ocupacional é uma profissão para mulheres (Figueiredo et al., 2018; Lima, 2021; Miller, 1992).

Em 1990, a American Occupational Therapy Association (AOTA) relatou, em seu Member Data Survey, que cerca de 95% das terapeutas ocupacionais dos Estados Unidos da América eram mulheres (AOTA, 1990 como citado em Miller, 1992). A divulgação desta informação se deu no mesmo período em que houve uma intensificação dos debates sobre as questões de gênero na profissão. Dois anos depois, o American Journal of Occupational Therapy publicou um número especial sobre o tema Feminism and Gender in Occupational Therapy. Segundo Rosalie Miller (1992), muito pouco tinha sido dito ou escrito sobre a desproporção de gênero na profissão e suas implicações raramente tinham sido abordadas diretamente, embora a identificação da Terapia Ocupacional como uma profissão feminina fosse um fator existente desde seu início, o que, segundo a autora, colocava a profissão em desvantagem na cultura dominante, marcadamente patriarcal.

As editoras convidadas - Roxie Hamlin, Kathryn Loukas, Jeanette Froehlich, Nancy MacRae - apresentaram a edição, que se tornaria um marco nas discussões de gênero na Terapia Ocupacional, com o texto “Feminismo: uma perspectiva inclusiva”, apontando alguns conceitos compartilhados pela Terapia Ocupacional e pelo feminismo: cuidado, conexão, empoderamento, nutrição, comunicação e relacionamentos. As autoras sublinharam a escassa presença da perspectiva feminista e das discussões de gênero na literatura sobre Terapia Ocupacional, e questionaram porque a profissão não tinha adotado a cultura e o conhecimento feministas, como haviam feito a Enfermagem e o Serviço Social. Para elas, um modelo inclusivo de feminismo, orientado para a libertação, empoderamento e justiça social, poderia permitir que mais terapeutas ocupacionais reconhecessem esta importante força de mudança e de luta contra o sexismo, o racismo e outras formas de opressão (Hamlin et al., 1992).

No mesmo número, Gelya Frank (1992) recontou a história da Terapia Ocupacional a partir de uma perspectiva feminista, bem como discutiu a segregação de gênero e a influência dos marcadores de classe e de raça na criação de oportunidades para terapeutas ocupacionais. Segundo a autora, porém, a análise das questões de gênero havia sido quase totalmente esquecida, uma ausência surpreendente para um campo em que a grande maioria das profissionais é mulher. Frank acreditava que este diálogo poderia ajudar a colocar as conquistas da Terapia Ocupacional no contexto histórico da entrada e do avanço das mulheres americanas no mercado de trabalho. Ainda nesta edição, Roxie Black Hamlin (1992) propôs um reexame da história, teoria e prática da profissão do ponto de vista feminista, pois procurou entender seu estado atual e fortalecer a profissão para sua entrada no século XXI. A autora salienta que, embora no início dos anos 1990, a AOTA tivesse um plano estratégico para enfrentar as questões de etnicidade e multiculturalismo, a questão de gênero ainda não havia sido discutida sistematicamente.

O desejo por compreender como o debate sobre gênero se desenvolveu no campo, nos levou à realização de uma revisão crítica de literatura que teve por objetivo sintetizar, analisar e discutir artigos que problematizam as questões de gênero e discutem a presença e o papel das mulheres no campo da Terapia Ocupacional, sua história, limites e possibilidades. A pesquisa foi guiada pela seguinte questão orientadora: como tem se dado, no campo da Terapia Ocupacional, as discussões sobre o impacto das desigualdades de gênero e da divisão do trabalho baseada no gênero no desenvolvimento da profissão?

Neste artigo apresentamos, na forma de um texto narrativo, os resultados desta pesquisa. Discutir e compreender os impactos das desigualdades de gênero na profissão, e suas consequências para a forma como o poder se distribui em ambientes profissionais e acadêmicos, contribui para o enfrentamento dessas desigualdades e para o fortalecimento da profissão e das terapeutas ocupacionais.

Percurso metodológico

Este artigo apresenta uma revisão crítica de literatura, com forma narrativa e discussão conceitual (Grant & Booth, 2009), realizada através do levantamento e da identificação de material relevante na literatura de Terapia Ocupacional que discute a presença e o papel das mulheres, a fim de problematizar o impacto das desigualdades de gênero no campo profissional.

O levantamento bibliográfico foi realizado nas seguintes bases: Web of Science, Lilacs, Scielo e PubMed, visando o acesso a textos publicados em revistas do campo da Terapia Ocupacional e interdisciplinares, nas quais há publicações de terapeutas ocupacionais. A busca foi completada por uma consulta ao Google Scholar, o que permitiu o acesso a publicações em revistas que não eram indexadas naquelas bases, mas estavam acessíveis na rede mundial de computadores. Os descritores utilizados foram: “terapia ocupacional” e “gênero” ou “feminismo” ou “feminista” ou “feminino” ou “mulher” ou “mulheres”.

Com o propósito de abarcar contextos históricos e geográficos diversos, a busca foi realizada em espanhol, inglês e português, sem recorte temporal, e foi finalizada em 2021; o texto mais antigo encontrado foi publicado em 1975. Os critérios de inclusão de artigos foram: 1) ser uma publicação revisada por pares; 2) ser de autoria de terapeutas ocupacionais; 3) discutir a presença e o papel das mulheres e o impacto das questões de gênero no campo profissional. Do material coletado foram retirados artigos duplicados, textos não escritos por terapeutas ocupacionais, ou não relacionados ao campo da Terapia Ocupacional, textos curtos, editoriais, cartas ao editor e artigos não acessíveis na internet e nem disponíveis nas bibliotecas consultadas.

A pré-análise (Bardin, 1977) do material restante, orientada pela questão da investigação e do objetivo proposto, permitiu, através de uma leitura flutuante dos resumos e dos textos completos, identificar artigos que não pertenciam ao escopo da revisão, por abordarem questões de masculinidade, experiências de pessoas LGBTQIA+ e aqueles que discutiam as pessoas acompanhadas em Terapia Ocupacional por uma perspectiva de gênero. Estes textos foram excluídos. O caminho realizado para identificação do material a ser analisado na pesquisa está descrito na figura 1.

Constituído o corpus da pesquisa, passamos ao processo de análise, iniciada pela leitura dos textos em profundidade, a partir da qual foram definidas unidades de sentido pertinentes aos propósitos da pesquisa. Em seguida, construímos relações entre as unidades para definir e nomear as categorias temáticas de análise com base nas informações contidas no corpus, com o intuito de possibilitar novas sínteses e novas compreensões em relação ao tema investigado. Foi composto, assim, um metatexto analítico, com o foco de expressar os sentidos do conjunto de textos lidos (Moraes, 2003).

O processo de análise do material foi baseado no método da análise textual qualitativa, proposta metodológica que se localiza entre a análise de conteúdo e a análise de discurso, operando com significados construídos a partir de um conjunto de textos (Moraes, 2003). Ao considerar que toda leitura é uma interpretação, realizada a partir de uma perspectiva teórica, explicitamos que esta pesquisa se fundamentou na perspectiva histórico-crítica de Foucault (1997), que permitiu construir uma problematização enraizada na atualidade. Orientada para a análise e reflexão sobre os processos que nos constituíram como as profissionais que somos, essa pesquisa buscou também apreender os pontos em que uma transformação é possível e necessária (Foucault, 2000).

Resultados e discussão

Foram considerados de interesse para a pesquisa vinte e nove (n=29) estudos publicados em inglês, espanhol ou português, escritos por terapeutas ocupacionais, de 1975 a 2021. Destes, 38% (n=11) dos textos foram publicados em Revistas da América do Norte e 52% (n=15) em Revistas da América do Sul, sendo 11 em Revistas dos Estados Unidos da América, nove do Brasil, dois da Colômbia, dois do Chile, um da Argentina, um da Bolívia, um do Reino Unido, um da Espanha e uma da Austrália. Quanto à nacionalidade das autoras e autores, acessamos textos escritos por autores da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos da América, França, Reino Unido e Suécia, sendo que 10% dos textos são fruto de colaboração entre pesquisadores de dois países (tabela 1).

A leitura dos textos encontrados permitiu eleger quatro categorias temáticas de análise: concepção de gênero presente nos textos; mulheres e feminismo na história da Terapia Ocupacional; segregação de gênero em Terapia Ocupacional: estereótipos femininos e cultura das mulheres; gênero e relações de poder: a luta pelo reconhecimento. Apresentaremos, a seguir, os textos lidos a partir dessas categorias temáticas.

Concepção de gênero presente nos artigos

Do total de textos considerados nesta revisão crítica, 59% deles aborda o lugar das mulheres e as questões de gênero que impactam a Terapia Ocupacional, revisitando a história da profissão; 45% trata essas questões por uma perspectiva feminista e/ou reflete sobre as relações entre feminismo e Terapia Ocupacional.

Nos 14 textos que foram publicados no último quarto do século XX, e até a primeira década do século XXI, embora a ideia de gênero ou a perspectiva de gênero esteja presente em 36% deles, somente um faz uma discussão sobre o conceito de gênero. Reese (1987) define gênero, a partir de Lopata e Thorne (1978), como um comportamento aprendido diferenciado do sexo biológico, buscando abrir espaço para novas compreensões de gênero baseadas na experiência e no ponto de vista das mulheres.

Nos 15 artigos publicados a partir de 2010, a perspectiva de gênero está presente em 87%, e em 33% deles é explicitada a concepção de gênero com o qual as autoras e os autores trabalham. Há uma convergência para a diferenciação entre sexo e gênero, já presente na definição utilizada por Reese (1987), que é, nesses textos, ampliada. Os autores e as autoras afirmam que o gênero não é um atributo natural das pessoas, mas uma construção social, resultado de práticas sociais que constituem o cotidiano (Sarmiento et al., 2018); ele é produzido pelas interações humanas diárias (Liedberg et al., 2010), no interior de relações históricas e políticas, de tal forma que alguém se torna mulher em contextos sociais e culturais específicos (Figueiredo et al., 2018).

Ao compartilhar desta perspectiva, Testa e Spampinato (2010) afirmam que gênero é a forma simbólica da diferença sexual que se fundamenta culturalmente em um conjunto de práticas, ideias e discursos. O sistema de gênero envolve mecanismos sociais que justificam desigualdades. Assim, falar das diferenças de gênero implica tornar visíveis as relações de poder e aceitar que elas não se baseiam na biologia ou anatomia, mas nas desigualdades que as sociedades constroem.

Para Morrison e Araya (2018), a Terapia Ocupacional permite compreender como, por meio de de ações e fazeres, cada um reproduz constantemente uma construção de gênero. Através de ocupações estamos fazendo gênero e, muitas vezes, reproduzindo modelos sexistas e patriarcais. Homens e mulheres são moldados durante suas vidas de acordo com o sistema de gênero, participam da manutenção e da reprodução dessas relações, e também podem transformá-las com suas ações3.

Mulheres e feminismo na história da Terapia Ocupacional

As profissões surgem e se desenvolvem em contextos sociais e culturais específicos, em uma rede de relações e ações. O significado do emaranhado de ações que criou a Terapia Ocupacional só pode emergir através de um olhar retrospectivo, que permita a construção de narrativas, revelando perspectivas parciais.

Morrison (2015) e Monzeli et al. (2019) consideram que, entre diferentes perspectivas do processo de constituição e institucionalização da Terapia Ocupacional, um ponto comum se estabeleceu em torno das narrativas de práticas desenvolvidas por mulheres, com diferentes formações profissionais, sob a tutela de homens, que se tornaram autores dessas narrativas e figuraram como protagonistas na criação e desenvolvimento da profissão. Nesse viés, considerando que as histórias são definidas por relações de poder, Morrison (2015) propõe uma versão alternativa para a história da Terapia Ocupacional, realizando uma abordagem feminista da participação das mulheres que contribuíram significativamente para o surgimento da profissão. Recuperando seu legado para as novas gerações, o autor dá um passo à frente no campo em termos de igualdade de gênero e afirma que os eventos envolvidos na história da Terapia Ocupacional exigem nossa responsabilidade ética diante do silenciamento de mulheres, pesquisadoras e profissionais, e de um inegável débito histórico com elas.

Em vários dos textos lidos há um esforço para abrir outras perspectivas para a história da profissão: propondo pensar paralelos entre o desenvolvimento do feminismo e o desenvolvimento da Terapia Ocupacional (Gilligan, 1976); recuperando o papel das mulheres e sua ligação com o movimento feminista nos primeiros anos da profissão (Frank, 1992; Lima, 2021; Morrison, 2015, 2016); problematizando as forças que convergiram para que a profissão fosse identificada como adequada às mulheres, no contexto das relações de trabalho desde a virada do século XX (Benetton & Varela, 2001; Froehlich, 1992; Litterst, 1992; Vogel et al., 2002); e, estudando e descrevendo a criação e expansão da profissão na América Latina (Figueiredo et al., 2018; Monzeli et al., 2019; Testa & Spampinato, 2010).

Neste conjunto de abordagens, é crucial compreender a relação intrínseca entre a origem da Terapia Ocupacional nos Estados Unidos de América e as possibilidades que as mulheres brancas das elites urbanas tinham, naquele país, no início do século XX, de ingressarem no mercado de trabalho e na esfera pública, com sua participação em instituições de ensino, beneficência e cuidado. Nos países da América Latina, o aparecimento da profissão também esteve relacionado a essa questão, com ampliação da circulação das mulheres e sua inserção em diferentes espaços sociais, o que foi capaz de abrir-lhes novas possibilidades, frequentemente em carreiras consideradas adequadas para elas e em posição de subalternidade (Gómez et. al., 2016; Monzeli et al., 2019; Testa, 2012).

Os textos que revisitam a história da Terapia Ocupacional também associam o papel do movimento feminista, do Movimento de Artes e Ofícios e da perspectiva filosófica do Pragmatismo na emergência da profissão (Lima, 2021; Morrison, 2016, 2021). Morrison (2015) afirma que, de uma perspectiva androcêntrica, a história da Terapia Ocupacional começa com o tratamento moral. Mas, de uma perspectiva feminista, esta história começa em um assentamento social - que permitiu que muitas mulheres atuassem politicamente no espaço público e começassem a experimentar formas alternativas de participação social, para além daquelas associadas ao casamento e à família.

Entre os assentamentos sociais, um foi particularmente importante para o desenvolvimento da Terapia Ocupacional: a Hull House, fundada por duas ativistas socialistas, Jane Addams e Ellen Gates Starr, no final de 1880. Julia Lathrop, Eleanor Clarke Slagle e muitas outras mulheres se juntariam a elas mais tarde, a fim de usar a vida comunitária como instrumento de enfrentamento dos problemas sociais, econômicos e de saúde de uma sociedade capitalista, particularmente os dos imigrantes e de outras comunidades minoritárias privadas de seus direitos. Estas mulheres estavam ligadas ao movimento feminista em seus primeiros anos e trocaram o trabalho voluntário em entidades religiosas, pela atuação no espaço público de forma a contribuir com as mudanças sociais. Suas ações viriam a compreender propostas que marcariam fortemente a Terapia Ocupacional (Frank, 1992; Monzeli, et al., 2019; Morrison, 2011, 2016).

Além de Eleanor Clarke Slagle, a assistente social que participou da Hull House - e que é uma das mulheres mais bem documentadas na história da Terapia Ocupacional -, as primeiras terapeutas ocupacionais foram: Susan Elizabeth Tracy, uma enfermeira que pertenceu à primeira geração de mulheres profissionais nos Estados Unidos da América e sistematizou suas pesquisas, realizadas desde 1904, em torno das artes e dos ofícios como tratamento; e Susan Cox Johnson, graduada em artes, línguas e enfermagem, que foi professora de artes, artesanato e Terapia Ocupacional, e desenvolveu um enfoque teórico centrado no aspecto reeducativo da ocupação (Morrison, 2015).

Em 1917, a Terapia Ocupacional se estabeleceu como profissão nos Estados Unidos da América no mesmo ano em que o país entrava na Primeira Guerra Mundial, o que demandou a formação em reabilitação e reorientação vocacional. Esta simultaneidade de eventos fez com que a profissão, que tinha raízes em movimentos políticos e sociais, e fortes ligações com o movimento feminista, se vinculasse ao Exército Americano e à Associação Médica Americana, duas das instituições mais poderosas, conservadoras e patriarcais do país, o que provocou uma transformação nas perspectivas adotadas inicialmente (Lima, 2021; Morrison, 2015).

Nesse sentido, emergindo de práticas sociais articuladas a conhecimentos humanistas e socialistas, a Terapia Ocupacional foi institucionalizada com o apoio de classes sociais poderosas e conservadoras, sob o poder da Medicina, e abandonou o ativismo político em favor de uma tentativa de fortalecimento científico do campo. Nesse processo houve uma validação crescente das ditas “características femininas” para o desempenho da prática profissional, o que resultou na segregação de gênero (Lima, 2021).

Esta foi a Terapia Ocupacional que chegou na Argentina, Brasil, Chile e Colômbia, a partir dos anos 1950, impulsionada por diferentes projetos de cooperação internacional. O surgimento da profissão e dos primeiros cursos de formação nestes países estava relacionado com as epidemias de poliomielite e com o tratamento moral em grandes asilos. Ali, o surgimento da Terapia Ocupacional foi parte de um processo histórico de criação de profissões auxiliares ao tratamento médico, o que permitiu a inserção de mulheres no ensino superior, em carreiras técnicas, embora em uma posição subordinada (Gómez et al., 2016; Monzeli et al., 2019).

No Brasil, a Terapia Ocupacional surgiu como uma profissão de nível técnico, subordinada à Medicina e a ser desempenhada por mulheres. Seu crescimento e fortalecimento aconteceu a partir do período de redemocratização do país, após a ditadura militar, no início dos anos 1980, quando abordagens feministas começaram a ganhar espaço. No mesmo período, o acelerado processo de industrialização e urbanização, e o aumento do nível de escolaridade das mulheres brancas, deu-lhes mais oportunidades de entrada e de permanência no mercado de trabalho (Figueiredo et al., 2018).

Na Argentina, o processo também foi atravessado por um sistema de gênero que estabeleceu hierarquias, privilégios e desigualdades. Embora sob a direção de médicos e sem desafiar as estruturas de poder, o grupo de mulheres que traçou o perfil da carreira no país forjou um caminho dentro do contexto de incerteza e de urgência que a epidemia representava, bem como demonstrou a relevância e a eficácia das ações das mulheres no nível político (Testa, 2012; Testa & Spampinato, 2010).

Na Colômbia, a Terapia Ocupacional nasceu em um contexto conservador e patriarcal, no qual as mulheres não podiam tomar decisões que implicassem responsabilidade. Neste contexto, terapeutas ocupacionais fizeram parte da luta das mulheres para adquirir o direito de participação política, econômica e social. Assim, a profissão constituiu-se como uma oportunidade para as mulheres de lutarem por sua autonomia, seu desenvolvimento e sua capacidade de contribuir para a sociedade (Gómez et al., 2016).

Além de possibilitar espaços para a luta coletiva das mulheres, Frank (1992) argumenta que a profissão proporcionou às mulheres oportunidades de carreira em um momento em que as portas para outras profissões mais prestigiosas e lucrativas estavam fechadas para elas. Além disso, a autora sustenta que muitas terapeutas ocupacionais das classes médias e das elites usufruíam de um ambiente profissional moldado pela cultura das mulheres, com sua ênfase no cuidado e não na competição. Abordaremos estas questões na seção seguinte.

Segregação de gênero na Terapia Ocupacional: estereótipos femininos e cultura das mulheres

Frank (1992) traz em seu texto a definição de segregação de gênero de Strober e Lanford, como uma desproporção entre o número de mulheres e homens em uma determinada profissão, considerando a população adulta envolvida em atividade produtiva em um determinado lugar ou região. Esta desproporção caracteriza o mundo do trabalho na modernidade ocidental e tem como efeito, entre outros: o fato de homens e mulheres escolherem suas ocupações de acordo com estereótipos sociais, sem considerar talentos e habilidades; e a diferença dos salários de mulheres e homens no mesmo emprego (Frank, 1992). A Terapia Ocupacional é uma profissão marcada, desde o seu início, pela segregação de gênero. Além do fato de as primeiras terapeutas ocupacionais serem mulheres interessadas em entrar no mercado de trabalho, fundadores e fundadoras acreditavam que as mulheres tinham personalidade, aptidões e habilidades necessárias para serem terapeutas ocupacionais (Benetton & Varela, 2001; Figueiredo et al., 2018; Hamlin, 1992; Litterst, 1992; Testa, 2012).

Para Litterst (1992), a imagem da Terapia Ocupacional como trabalho adequado às mulheres foi uma estratégia para ampliar as ideias dominantes sobre as suas capacidades e responsabilidades, com o objetivo de justificar seu desempenho em um novo tipo de tarefa. Assim, nos Estados Unidos da América, no contexto da Primeira Guerra Mundial, muitas mulheres foram recrutadas para atuar como auxiliar de reconstrução, expandindo a força de trabalho em um momento de escassez de trabalhadores e, ao mesmo tempo, aplacando a crescente pressão das mulheres para serem incluídas no esforço de guerra e no mercado de trabalho.

Quando a guerra terminou, um apoio ideológico adicional para a manutenção da Terapia Ocupacional como profissão feminina foi oferecido na forma de correspondências estereotipadas entre as supostas características das mulheres e as características propostas para a profissão. A ideologia difundida sobre as mulheres, no início do século XX nos Estados Unidos da América, presente até hoje ali e em vários outros países, sustentava que elas eram sexualmente, psicologicamente e intelectualmente distintas dos homens e que seriam mais atentas e abnegadas por natureza (Litterst, 1992). Essa visão expressa a divisão sexual do trabalho no capitalismo e reserva às mulheres o papel do cuidado reprodutivo e a atuação no âmbito da vida privada; e ao homem a atuação no espaço público e na vida política. Assim, em vários países, a Terapia Ocupacional foi desenvolvida como um campo profissional delimitado pelo que era considerado naturalmente feminino, compreendendo o desenvolvimento de atividades da vida diária, atividades artesanais e cuidado infantil, num processo em que o papel tradicional da mulher dentro de casa foi sendo estendido para fora, ampliando as opções de trabalho (Testa & Spampinato, 2010).

Loukas (1992) chama atenção, ainda, para o fato de que esta divisão social do trabalho fez com que as terapeutas ocupacionais somassem o papel de cuidadoras e nutridoras no âmbito profissional às tarefas do cuidado no âmbito familiar, o que teve como consequência o fato de que mulheres casadas com emprego em tempo integral, gastassem, em média, 85 horas por semana em trabalho remunerado, em trabalho doméstico não remunerado e em atividades de cuidados infantis.

Estereótipos de gênero foram sustentados na profissão pelas próprias terapeutas ocupacionais. Para a Sociedade Nacional de Promoção da Terapia Ocupacional (NSPOT), dos Estados Unidos da América, as terapeutas ocupacionais deveriam ter mais de 25 anos de idade, ter habilidades manuais, ser carinhosas, maternais, engenhosas, entusiasmadas, atentas, versáteis e adaptáveis e, de preferência, solteiras, o que expressa a incompatibilidade entre um casamento e um emprego para o modelo cultural da época (Hamlin, 1992). Para Eleanor Clarke Slagle, a terapeuta ocupacional deveria apresentar um bom equilíbrio entre delicadeza, gentileza, paciência, honestidade, firmeza e capacidade de adaptação, o que tornaria possível atender às necessidades particulares de cada paciente (Benetton, 2008; Frank, 1992).

Neste contexto, as características consideradas necessárias para ser uma boa terapeuta ocupacional correspondem às ideias convencionais de feminilidade da época. A naturalização destas características de gênero teve origem no início do século XIX, com o “culto à domesticidade”, quando homens e mulheres de classe média começaram a experimentar uma demarcação social entre o mundo do trabalho e o lar. Isto foi expresso culturalmente por uma ênfase crescente nos atributos emocionais das mulheres versus os atributos masculinos de produtividade e eficiência (Cott, 1977, como citado em Frank, 1992). Hamlin (1992) considera que as características exigidas das terapeutas ocupacionais correspondiam à desvalorização sistemática das mulheres em um patriarcado arraigado. Por outro lado, as características vistas como masculinas eram mais valorizadas na sociedade em geral, na academia, na ciência e na Medicina.

O desequilíbrio entre o número de homens e mulheres na profissão parece ter se mantido na atualidade em diferentes países. Um estudo realizado pelo Colegio de Terapeutas Ocupacionales de Chile, de 2014, observa uma predominância do gênero feminino (80%) no exercício da profissão naquele país (Rivera et al., 2017).

Morrison (2011) acredita que o caráter eminentemente prático da profissão tenha contribuído para que a Terapia Ocupacional se mantivesse como ocupação para as mulheres: embora vários homens tenham estudado a profissão e seus efeitos na saúde e no bem-estar, foram as mulheres que acompanharam os pacientes, observaram o que faziam, reestruturaram suas rotinas, numa manutenção do trabalho intelectual como uma atividade dos homens, ficando a cargo das mulheres a prática e o trabalho de cuidado. Figueiredo et al. (2018) chamam a atenção para a proximidade entre a vida doméstica e as atividades cotidianas, enquanto Vogel et al. (2002) mencionam a relação intrínseca entre Terapia Ocupacional e cuidado. Hamlin (1992) acrescenta que, como o cuidado está associado ao trabalho não qualificado e não remunerado das mulheres, qualquer profissão que o pratique é desvalorizada.

Miller (1992) acredita que procurar aumentar o número de homens na profissão contribuiria muito pouco para combater esta desvalorização. Para a autora, a potência da Terapia Ocupacional estaria na valorização de qualidades que são subvalorizadas na cultura ocidental moderna, muitas vezes identificadas como qualidades femininas, e no fortalecimento da perspectiva filosófica que a fundamenta, que foi tecida com os mesmos fios que compõem o feminismo.

Gênero e relações de poder: a luta por reconhecimento

As relações de poder, marcadas pelas desigualdades de gênero e fortemente presentes no campo da saúde, têm dificultado que as terapeutas ocupacionais afirmem os princípios filosóficos, éticos e políticos de sua profissão, fundamentados em valores tradicionalmente relacionados ao feminino.

Os esforços empreendidos pelas terapeutas ocupacionais, em busca de legitimação, passaram necessariamente pela racionalização do trabalho para validação científica no paradigma positivista, o que transformou a prática, a teoria e as metodologias no campo (Morrison, 2011). Somado a isso, as hierarquias no campo da saúde e no âmbito acadêmico fizeram com que as terapeutas ocupacionais fossem submetidas a um papel subserviente nas estruturas dos serviços e das instituições, o que colocou os homens em uma posição de poder, levando muitas delas a acreditarem que somente através da aliança com a Medicina seria possível alcançar o reconhecimento que mereciam (Litterst, 1992). A consequência desta tentativa de fazer alianças com a Medicina, sem uma abordagem crítica, foi uma distribuição desigual de papéis na produção de conhecimento que impactou muito a profissão: os homens, com sua autoridade médica, foram encarregados de construir a sustentação científica da Terapia Ocupacional, desenvolver teorias e publicar artigos, enquanto coube às mulheres desenvolver a prática terapêutica (Metaxas, 2000, como citado em Morrison, 2011).

Isto foi agravado por uma ausência de problematização da segregação de gênero que operava na profissão. Reese (1987) questiona a falta de conscientização das terapeutas enquanto mulheres, afirmando que, muitas vezes, o silêncio que daí decorre é uma forma de consentir com a própria opressão.

Em 1975, Elizabeth Yerxa perguntou a terapeutas ocupacionais como o fato de ser mulher influenciava em sua vida profissional. A resposta mais frequente que obteve foi a de que isso não fazia diferença. A autora conta que, nesta época, as conversas sobre o movimento feminista eram raras e a luta por direitos iguais era vista como separada das preocupações profissionais (Yerxa, 1975). Segundo Frank (1992), isto permaneceu até a década de 1990, quando perspectivas feministas começaram a questionar conceitos de saúde fundados, quase que exclusivamente, no ponto de vista médico e masculino.

Foi nesse período que Hamlin (1992) alertou para o fato de que uma compreensão de nosso papel no sistema médico-patriarcal poderia nos ajudar a reconhecer nossa sabedoria e nossa força, e valorizar a singular mistura, no campo entre a Ciência da Ocupação e a arte de cuidar. Duas décadas depois, Liedberg et al. (2010) convidaram as terapeutas ocupacionais a aumentar sua consciência sobre as questões de gênero; e Testa e Spampinato (2010) afirmaram que ignorar as questões de gênero despolitiza a prática profissional e invisibiliza as consequências das assimetrias de poder, constituídas por fatos, dispositivos, eventos e processos que são reproduzidos social e subjetivamente.

Para Miller (1992), nossas técnicas e nossa filosofia não foram levadas a sério pelo estabelecimento médico porque estavam fora do modelo biomédico. Para ela, o conhecimento que emerge do campo pede outras epistemologias. Para enfrentar a segregação de gênero e suas consequências, ela propõe: investir, apoiar e facilitar lideranças femininas; desenvolver estratégias inovadoras para a organização feminista nos ambientes de trabalho; incluir essas discussões na formação de terapeutas ocupacionais; e sustentar nossos esforços como profissão feminizada, confrontando em cada uma de nós nossos próprios preconceitos de gênero.

Para Morrison e Araya (2018), o feminismo é uma contribuição crucial para entendermos nossa posição no mundo; desnaturalizar práticas sistemáticas de injustiças e arbitrariedades e produzir práticas de resistência.

Além disso, os objetivos da Terapia Ocupacional estão em sintonia com a perspectiva feminista de interdependência (Loukas, 1992). Como afirmam Pollard e Walsh (2000):

A terapia ocupacional e a filosofia feminista compartilham fios comuns, que devem continuar a ser explorados se a terapia ocupacional está empenhada em tornar-se uma prática totalmente inclusiva e reflexiva que leve inteiramente em consideração o impacto do gênero e da classe na profissão. (p. 430, tradução nossa)4

Acrescenta-se que abordagens interseccionais - ao articular as discussões de gênero com questões de diversidade, saúde mental, deficiências, colonialidades, raça, classe e etnia, e a forma como participam dos sistemas de opressão - vem enriquecendo perspectivas críticas no campo profissional (Ferrufino et al., 2019; Froehlich, 1992; Pollard & Walsh, 2000).

Conclusão: Perspectivas abertas para uma abordagem feminista da Terapia Ocupacional

Neste artigo, abordamos as formas como publicações no campo da Terapia Ocupacional problematizaram as questões de gênero e discutiram a presença e o papel das mulheres no campo profissional. Ao utilizarmos o método da análise textual qualitativa procuramos fornecer uma visão abrangente das ideias já publicadas sobre o tema e construir uma compreensão da discussão presente no campo, a fim de atribuir visibilidade a processos que nos constituíram como as profissionais que somos. O que pode nos fazer vislumbrar os pontos em que uma transformação é possível e necessária.

A produção textual que emergiu da análise do material, sendo uma problematização enraizada na atualidade, caracteriza-se por sua incompletude, o que é também um convite ao diálogo.

Os textos lidos problematizaram o desequilíbrio no número de homens e de mulheres, suas razões, sua relação com o estabelecimento de contornos profissionais ligados aos estereótipos de gênero; discutiram o papel que as relações de poder decorrentes das desigualdades de gênero, que marca a divisão do trabalho no setor da saúde, tiveram nos desafios para o reconhecimento da profissão; e recuperaram a história da profissão, destacando as primeiras conexões com o feminismo.

As análises apontaram para a importância de recuperarmos essas conexões. A perspectiva feminista pode fortalecer as bases teóricas e filosóficas da Terapia Ocupacional e ajudar a compreender e a enfrentar as dificuldades de gênero que atravessam a vida das terapeutas ocupacionais, para que se possa reconhecer a oportunidade histórica de questionar radicalmente as bases de uma ciência patriarcal. Uma aliança com epistemologias feministas pode apontar não só para o combate contra qualquer forma de violência ou opressão, como também para a construção de modos de conhecer pautados em relações solidárias.

Por fim, as discussões que o movimento e a perspectiva feminista têm realizado em torno do trabalho de cuidado, remunerado e não remunerado, contribui para a valorização do trabalho das mulheres e para a afirmação de que sem cuidado não conseguimos imaginar um mundo no qual seja possível viver. Segundo Grandón (2023), a aproximação com o feminismo possibilita fortalecer um deslocamento da lógica mercantil, médica e técnica, bem como busca valorizar a dimensão do cuidado, permitindo que experimentemos os tempos das relações humanas, dos afetos, da vida comunitária.

Cuidado, hoje, implica cuidar de todos e de cada um, humanos e não humanos. Implica cuidar do mundo e da vida, para que possamos prosseguir.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

Figura 1. Caminhos do levantamento bibliográfico

Fonte: elaboração própria.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

Tabela 1. Corpus de artigos

Fonte: elaboração própria.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

3. Para uma discussão mais aprofundada sobre as formas de entender a construção de gênero que predominam nos estudos da ocupação, indicamos a leitura do artigo de Alonso-Ferreira et al. (2022) que apresenta uma revisão de escopo que investigou como o conceito de gênero tem sido tratado na terapia ocupacional e na pesquisa relacionada à ciência da ocupação.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

4. “Occupational therapy and feminist philosophy share common threads, which should continue to be explored if occupational therapy is to strive for a wholly inclusive and a reflective practice which takes full account of the impact of gender and class in the profession”.

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.

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Referências

Lima, E. M. F. A.  & Paula, I. L.