investigación

“Lugar do feminismo é no cotidiano”: participação

nos movimentos feministas

e ocupações de mulheres

jovens militantes

Recebido: 27 de abril de 2023 • Enviado para revisão: 24 de maio de 2023 • Aceito: 7 de junho de 2023

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L. (2023). “Lugar do feminismo é no cotidiano”: participação nos movimentos feministas e ocupações de mulheres jovens militantes. Revista Ocupación Humana, 23(2), 56-71. https://doi.org/10.25214/25907816.1607

“El lugar del feminismo está en la vida cotidiana”: participación en movimientos feministas y ocupaciones de mujeres jóvenes militantes

“Feminism fits in everyday life”: Participation in feminist movements and occupations of young militant women

Maria Luisa de Sá Peregrino Arrais 1

Daniela Tavares Gontijo 2

Marina Maria Teixeira da Silva 3

Ricardo Lopes Correia 4

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

1 Terapeuta ocupacional. Programa de Residência Multiprofissional Integrado em Saúde, concentração de Saúde da Mulher, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, Brasil. mluisadesa@gmail.com

https://orcid.org/0000-0001-5721-9183

2. Terapeuta ocupacional. Doutora em Ciências da Saúde. Professora, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE, Brasil. danielatgontijo@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-2117-0143

3. Graduada em Letras. Mestra em Direitos Humanos. Servidora técnica, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE. Brasil. marina.tsilva@ufpe.br

https://orcid.org/0000-0002-6435-4700

4. Terapeuta ocupacional. Mestre y doutor em Ciências da Saúde. Professor, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ricardo@medicina.ufrj.br

https://orcid.org/0000-0003-3108-2224

Resumo

Diante das múltiplas possibilidades para o envolvimento ocupacional, o ativismo social é caracterizado como uma ocupação indissociável da identidade de um sujeito. Entre as formas de experienciar a ocupação do ativismo social no cotidiano, aquelas relacionadas às vivências de mulheres em movimentos feministas são o foco deste estudo. A pesquisa tem por objetivo compreender como o envolvimento nos movimentos feministas impacta nas outras ocupações de mulheres jovens militantes. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo história oral temática, e teve a participação de dez mulheres jovens, que se auto proclamam como militantes atuais dos movimentos feministas. Foi utilizada a estratégia de bola de neve para o recrutamento e os dados foram coletados por meio de entrevistas via Google Meet. Identificam-se seis categorias temáticas que se relacionam ao processo de aproximação e significados do envolvimento com os movimentos feministas, a relação com o cotidiano em geral, as relações sociais, o lazer e o trabalho, a religiosidade e os cuidados de si. Os resultados contribuem para a visibilidade do envolvimento nos movimentos feministas no cotidiano e denunciam as limitações que as estruturas sociais impõem para as ocupações das mulheres.

Palavras-chave: direitos da mulher, atividades cotidianas, Terapia Ocupacional, feminismo

Resumen

Frente a las múltiples posibilidades de participación ocupacional, el activismo social se caracteriza como una ocupación inseparable de la identidad de un sujeto. Entre las formas de experimentar la ocupación del activismo social en la vida cotidiana, este estudio se enfoca en aquellas relacionadas con las experiencias de mujeres en movimientos feministas. El objetivo de la investigación es comprender cómo la participación en movimientos feministas impacta en las otras ocupaciones de las jóvenes militantes. Se trata de una investigación cualitativa, del tipo historia oral temática, y contó con la participación de diez mujeres jóvenes que se autorreconocen como militantes actuales de movimientos feministas. Para el reclutamiento se utilizó la técnica de bola de nieve; los datos se recopilaron a través de Google Meet. Se identifican seis categorías temáticas relacionadas con el proceso de aproximación y los significados de involucrarse con los movimientos feministas; la relación con la vida cotidiana en general; las relaciones sociales; el ocio y el trabajo; la religiosidad; el autocuidado. Los resultados contribuyen a dar visibilidad a la participación en movimientos feministas en la cotidianidad y denuncian las limitaciones que las estructuras sociales imponen a las ocupaciones de las mujeres.

Palabras clave: derechos de la mujer, actividades cotidianas, Terapia Ocupacional, feminismo

Abstract

Given the possibilities for occupational involvement, social activism is characterized as an occupation inseparable from a subject’s identity. The focus of this study is the experiences of women in feminist movements as one of the ways to experience social activism in daily life and aims to understand how involvement in these movements impacts other occupations of young militant women. This was a qualitative research, based on the thematic oral history, with the participation of ten young women who self-identify as current militants of feminist movements. The snowball strategy was used for recruitment and the data was collected through interviews on the Google Meet platform. Six thematic categories are identified, related to the approximation process and the meaning of involvement in feminist movements, the relationship with daily life, social relationships, leisure and work, religion and self-care. The results contribute to the visibility of participation in feminist movements in everyday life and denounce the limitations imposed on women’s occupations by the social structures.

Keywords: women’s rights, activities of daily living, Occupational Therapy, feminism

5. Na América Latina considera-se a trajetória dos movimentos feministas a partir de suas ondas, as quais estabeleceram transformações sociais e ocupacionais na vida das mulheres, como o engajamento na busca de seus direitos sociais e na resolução de problemáticas (Domingues, 2020; Oliveira, 2015; Silva, 2019). De forma mais ampla e interseccional, é importante destacar que as diferentes ondas do feminismo, ao longo do tempo, abriram espaço e protagonismo para outros sujeitos, como pessoas trans, travestis, queers e identidades plurais para além da organização de mulheres cisgêneras que, majoritariamente, são as mais destacadas na historiografia, sem uma devida contextualização e recorte das diferenças de gênero e sexualidade.

Introdução

Nos cenários da Terapia Ocupacional e da Ciência Ocupacional, as relações entre as ocupações humanas e o contexto (socioeconômico, histórico, cultural e político) são discutidas por diferentes autores (Costa et al., 2017; Morrison et al., 2021; Pontes & Polatajko, 2016; Salles & Matsukura, 2016). De acordo com Ferrufino et al. (2019), é preciso identificar os significados das ocupações, de forma integrada, como parte do contexto que opera e se produz a vida cotidiana.

Nesse sentido, podemos compreender que as ocupações na vida cotidiana são influenciadas, determinadas, limitadas e/ou potencializadas por condições contextuais – marcadas por diferentes fatores que configuram a existência. É a partir do envolvimento ocupacional significativo que o sujeito modifica a si mesmo e percebe-se construtor do cotidiano, sendo assim, as ocupações são formas de ação dos seres humanos no mundo (Gontijo & Santiago, 2020).

Para Correia (2021), o envolvimento ocupacional é uma experiência conflitiva entre o eu individual e o coletivo. As micro e macro questões contextuais, que, de forma geral, compreendem a realização da vida (das necessidades aos desejos), as performances de atividades que são tecidas na cultura e nas relações sociais (entre o mundo humano e não-humano, em diferentes espaços e tempos), permitem a própria construção e a realidade que habitamos.

Diante das múltiplas possibilidades para o envolvimento ocupacional, o ativismo social é caracterizado como uma ocupação indissociável da identidade de um sujeito na sua forma de ‘ser’, que se desenvolve ao longo da vida diante dos questionamentos, bem como das práticas e ideologias pré-estabelecidas. Fox e Quinn (2017) refletem que, por meio de seu senso moral, as pessoas se envolvem criticamente no ativismo social, buscando modificações sociais. Esse envolvimento é potencializado pelas ideias e discursos e manifestado diante da participação em campanhas, manifestações, palestras, greves, entre outras atividades ocupacionais do cotidiano.

Nessa perspectiva, o envolvimento ocupacional no ativismo social pode apresentar, ainda que dentro de um mesmo grupo, motivações distintas, e utilizar de diferentes métodos para atingir um objetivo. Contudo, no estudo que se dedicou a compreender o ativismo social de idosos da Irlanda, Fox e Quinn (2017) discutem que a motivação dos participantes da pesquisa para a ação no ativismo social se deu a partir da exposição de situações de injustiça e de desigualdade ou pela influência de outras pessoas envolvidas com essa ocupação.

Entre as diferentes possibilidades de experienciar a ocupação do ativismo social que se mostram presentes no cotidiano, aquelas relacionadas às vivências e às atuações de mulheres em movimentos feministas são o foco deste estudo.

Os feminismos são movimentos históricos, manifestados em diferentes épocas e locais desde os finais do século XVIII, mas que ganharam força no século XX, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, diante das pautas apresentadas por mulheres cisgêneras, na luta contra as opressões patriarcais. Atualmente, no século XXI, os movimentos feministas passam pela quarta onda5, que potencializa a análise dos fatores culturais e a diversidade de demarcações raciais, sexuais, geracionais e de classes econômicas, avançando na inserção de sujeitos que se auto identificam femininos, mulheres, nas faces políticas em um sentido crítico-emancipatório (Oliveira, 2015; Silva, 2019).

De maneira geral, os movimentos feministas podem ser caracterizados como

ação política das mulheres. Engloba teoria, prática, ética e toma as mulheres como sujeitos históricos da transformação de sua própria condição social. Propõe que as mulheres partam para transformar a si mesmas e ao mundo (...). Reconhece um poder não somente no âmbito do público estatal, mas também o poder presente em todo o tecido social, fazendo a concepção convencional da política e a noção de sujeito se ampliarem. (Soares, 1995, como citado em Soares, 1998)

Os movimentos feministas são atos de libertação das expectativas criadas e impostas a um modelo feminino inexistente. Além disso, acrescenta-se que o gênero é uma das facetas sobre o ser e fazer ocupacional, que implica na reprodução dos modelos e condicionamentos sexistas e patriarcais, delimitando e limitando o cotidiano (Correia et al., 2020; Gozzi et al., 2016; Morrison & Araya, 2018; Silva et al., 2019).

Existe, assim, uma aproximação epistemológica dos estudos e correntes feministas com o entendimento da ocupação do ativismo social, uma vez que os feminismos podem ser entendidos como meio de criticar e modificar as estruturas de opressão e reivindicar contra qualquer forma de exploração e violência das mulheres e de grupos mantidos à marginalização em diferentes contextos da vida cotidiana (Gozzi et al., 2016; Morrison & Araya, 2018). Logo, as estruturas de opressão discutidas nos e pelos movimentos feministas perpassam, operam e podem impactar no envolvimento de outras ocupações por mulheres em seus cotidianos.

De acordo com o estudo de Navega et al. (2023), há diferentes formas de se envolver ocupacionalmente impostas por relações opressoras e conflituosas de assimetria de poder e desigualdades no envolvimento ocupacional de mulheres em contextos de vulnerabilidades socioeconômicas. Contudo, estas distintas formas, como a dupla ou tripla jornada de trabalho, atividades domésticas, estudos, lazer, entre outras, possuem o ativismo feminista e a luta por melhorias no território como intencionalidades coletivas – que permitem um certo equilíbrio e indissociabilidade entre ativismo e envolvimento em outras ocupações. Neste estudo, os autores destacam as percepções e estratégias que mulheres de favela criam e exploram cotidianamente para superar ou ressignificar a pobreza a partir das transformações das estruturas e relações microssociais cotidianas, através da crítica das opressões de gênero e das injustiças sociais.

Destarte, discussões sobre as ocupações e o envolvimento ocupacional, tanto na Terapia Ocupacional quanto na Ciência Ocupacional, podem contribuir com as perspectivas dos movimentos feministas, e vice-versa. Tal contribuição sustenta-se na compreensão das ocupações e do envolvimento ocupacional a partir de uma perspectiva crítica interseccional, que se configura na relação dos eixos e dos processos sócio-históricos relacionados às relações de poder e que são refletidos nas diferentes experiências e trajetórias daquelas pessoas que se identificam como mulheres (Ferrufino et al., 2019; Morrison & Araya, 2018).

Assim, o presente artigo tem como objetivo compreender como o envolvimento nos movimentos feministas impacta nas outras ocupações de mulheres jovens militantes.

Percurso metodológico

Esta pesquisa é qualitativa, do tipo história oral temática, que possibilita a compreensão das diferentes vivências considerando como o passado tem continuidade no presente e contribui para dar um sentido social à vida das pessoas (Meihy & Holanda, 2020). O método da história oral, tanto na pesquisa quanto na prática profissional, contribui “para a desnaturalização das narrativas hegemônicas”, de grupos oprimidos e silenciados por uma construção social e política (Silva & Barros, 2010, p. 72).

A pesquisa foi realizada com a participação de dez mulheres, com idade entre 18 e 29 anos, que se autoproclamam como militantes atuais dos movimentos feministas, que relataram participar de coletivo feminista, com experiência de, no mínimo, um ano. Foi utilizada a estratégia de bola de neve (Vinuto, 2014) para o recrutamento das colaboradoras na Região Metropolitana do Recife, cidade do estado de Pernambuco, Brasil, dando-se a saturação pelo localismo.

Em um primeiro momento, foi realizado um mapeamento prévio de possíveis colaboradoras com as quais a pesquisadora principal tinha contato por redes de relações sociais vinculadas aos movimentos feministas. Complementar a essa busca, foi feito contato por meio da plataforma digital Instagram, com perfis de coletivos feministas, em busca de possíveis participantes.

Os dados foram coletados entre os meses de setembro e novembro de 2021, utilizando-se de entrevistas semiestruturadas, realizadas na plataforma digital Google Meet de forma virtual, em vista do isolamento social como prevenção diante do contexto da pandemia do SARS-coV-2 (Covid-19). Para a condução da entrevista, foi utilizado um roteiro contendo questões sobre o processo de aproximação, de participação e de envolvimento nos movimentos feministas.

As entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas a procedimentos de categorização, inferência, descrição e interpretação conforme propõe a técnica da análise de conteúdo. A técnica foi operacionalizada em três momentos: 1. Pré-análise: na qual realizou-se a leitura flutuante, exaustiva e compreensiva do conteúdo, demarcando os pressupostos e hipóteses iniciais do material como um todo. 2. Exploração do material: as pesquisadoras buscaram por codificações, conceitos, temáticas, expressões e palavras, por meio do estudo aprofundado do conteúdo, organizando o material em categorias. 3. Tratamento dos resultados/ inferência/ interpretação: construção de uma síntese interpretativa a partir da qual foi possível propor inferências, fazer análise crítica e reflexiva do conteúdo, além de interpretar e redigir o texto com o intuito de relacionar o conteúdo coletado aos objetivos da pesquisa (Gomes, 2009).

O processo de análise resultou em seis categorias temáticas que se relacionam ao processo de aproximação, aos significados do envolvimento com os movimentos feministas e a relação com o cotidiano em geral, tais como: as relações sociais, o lazer e o trabalho, a religiosidade e os cuidados de si.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco (número do parecer: 4.950.538). A participação das colaboradoras nessa pesquisa foi condicionada à assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Além disso, para garantir o anonimato, as mulheres escolheram codinomes pelos quais são identificadas neste texto.

Resultados e discussão

Participaram do estudo dez mulheres residentes que se identificam como feministas, atuando em movimentos sociais e vinculadas a quatro coletivos do estado de Pernambuco. Pode-se observar na tabela 1 que o predomínio das colaboradoras foram mulheres solteiras e discentes de cursos de graduação. Um dado em comum do perfil das colaboradoras deste estudo é que as mulheres não possuem filhos.

Ao considerar a perspectiva da história oral, apresentamos, inicialmente, como se ocorreu o processo de envolvimento ocupacional com/nos movimentos feministas, assim como as concepções e os significados a eles atrelados. Tais conteúdos são essenciais para contextualizar as percepções das participantes em relação aos impactos do envolvimento com/nos movimentos feministas nas outras ocupações destacadas por essas mulheres feministas.

Envolvimento com os movimentos feministas: a aproximação e seus significados

Acerca do processo de aproximação com os movimentos feministas, identificamos colaboradoras que apontaram para a vivência de uma educação feminista, julgando que isso tenha acontecido de forma indireta. À vista disso, algumas colaboradoras argumentam que cresceram em espaços sem necessariamente ou diretamente serem apresentadas a um embasamento teórico, mas que suas vivências práticas foram norteadas por pensamentos e ideologias de cunho feminista. Dessa forma, essas mulheres entendem-se feministas antes mesmo de terem sido apresentadas ao termo ou antes de se entenderem politicamente como militantes dos movimentos feministas.

Talvez a percepção do termo feminista eu venha ter tido entendimento já quando eu comecei a acessar o espaço da universidade, mas inconscientemente assim, não inconscientemente, como eu posso dizer? Sem base, sem embasamentos teóricos, eu tive a prática e criação feminista dentro de casa. (Carolina)

Os apontamentos trazidos pelas participantes nos remetem às reflexões realizadas pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2017) em seu livro “Para educar crianças feministas: um manifesto”, baseado em uma experiência da autora que aconselha sobre formas de educação de crianças com o intuito de uma sociedade mais igualitária. A autora, em um primeiro momento de suas instigações, aponta ferramentas feministas para os valores igualitários e papéis de gênero, e, assim, destaca que o gênero é ensinado e construído socialmente, o que significa que aprendemos a ser quem somos por meio da cultura em que somos socializadas. Mas se por um lado herdamos as tarefas culturais femininas e masculinas, por outro lado isso pode ser questionado e transformado pela educação.

Adichie (2017) traz, como sugestão para a educação das crianças, que as mulheres possam vivenciar situações para além da maternidade, rompendo com as tradições culturais que se voltam para a submissão ao lar e para o cuidado dos filhos e do marido. Ao encontro dessa ideia, algumas participantes relataram que suas aproximações com os feminismos ocorreram a partir de inquietações frente às vivências nos diferentes cenários em que conviviam.

Eu acho que começou eu percebendo como as mulheres mais velhas da minha família tratavam seus maridos e como os maridos queriam ser tratados dentro de um casamento, numa refeição que alguma tia minha tinha obrigação de ir lá e pôr no prato do marido. (Tereza)

E essa minha inquietação, essa minha vontade, né, de mudar o ambiente que eu vivia, procurar e entender o porquê que eu estava pensando sobre as questões femininas. (Morgana)

A fala de Morgana indica uma significativa necessidade de quebrar as amarras sociais, impostas por questões emocionais ou atitudinais, no panorama de desconstrução, consonando na mudança dos comportamentos patriarcais. Essa ideia vai ao encontro das reflexões de Mayorga (2019), que, à luz dos feminismos, discute como em uma sociedade misógina os valores e papéis femininos exercidos são culturalmente assumidos em função da satisfação do homem. Nesse sentido, pode-se entender que a busca ativa pelos feminismos é, também, a procura por um espaço para a expressão de revoltas e lutas sociais, diante das implicações nas relações de gênero no cotidiano, como posto por Gozzi et al. (2016).

Nessa mesma direção, Violeta e Unicórnio convergem nas ideias quando enfatizam que, apesar de doloroso, é importante reconhecer que não está sozinha e, somado a isso, a busca pelos movimentos foi pautada por uma coexistência de pertencimento, de forma que, dentro dos feminismos, as mulheres encontraram-se sendo apoiadas umas pelas outras.

Eu fui passando a entender a importância e de que eu não estava em momento nenhum sozinha. (Unicórnio)

bell hooks (2017) afirma que ser consciente da realidade é um processo em que pode haver, e normalmente há, uma certa dor envolvida. Contudo, quando precedida pela tomada de consciência das próprias mulheres e pela modificação de si mesmas, resulta na possibilidade de libertação dos seres humanos. Tais reflexões realizadas pela autora vão no mesmo sentido da percepção de uma das participantes deste estudo, que relata que o pensamento crítico feminista interfere nas estruturas sociais, a partir do lugar das mulheres, sendo correlacionadas às histórias de vidas e às condições que criam a necessidade de libertação.

Eu digo que foi bem libertador no sentido de mudar certos comportamentos, assim, padrões de comportamentos, que foram passados da minha avó para minha mãe e da minha mãe para mim. E querendo ou não, eu reproduzia isso para outras mulheres, então comecei a ter uma relação melhor com outras mulheres e comigo mesma, nas relações do dia a dia, até relacionamento tanto de amizade, quanto amorosos, na relação com meu corpo. (Yá)

Neste estudo, a construção de coletivos também é um aspecto a ser considerado na compreensão da aproximação com os movimentos, posta a necessidade de formação política e de espaços que acolham as demandas de um grupo populacional. O coletivo e outras organizações, orgânicas ou não, dentro dos movimentos feministas, são significados como meios para que as mulheres envolvidas consigam alcançar mais objetivos, como, também, união de forças, compartilhando e promovendo espaços de luta junto com outras mulheres.

A questão do coletivo é importante porque eu acho que eu vivi fazendo isso sozinha, de forma individual, e eu sentia que era muito difícil, só, você consegue, mas é mais difícil e quando você tem uma organização coletiva, que é um coletivo, você tem mais força. (Dandara)

Sobretudo, os pensamentos de Dandara somam-se aos de Tereza, que refletem que mulheres devem se perceber em torno de uma luta comum a elas, entendendo que partem de lugares sociais diferentes e que a teoria é potencializada na prática, não sendo suficiente “se a gente não tiver uma organização social, porque nada se conquista sem organização social” (Tereza).

A autora Márcia Tiburi (2018) descreve que, em busca de ultrapassar as opressões, dominações e explorações, os coletivos feministas levam a luta por todas, todes6 e todos pela libertação dos sujeitos, incluídos nos processos democráticos, modificando a supremacia masculina e abrindo espaço para as expressões de gênero. Assim como discutido por Fox e Quin (2017), na participação no ativismo social, encontramos coletivos que se constituem como grupos de indivíduos que dividem os mesmos interesses e posicionamentos que militam por uma posição legitimada na sociedade.

Concordamos também com Alvarez (2014), quando a autora aponta que desde grupos formais, organizações não governamentais (ONGs) e até grupos informais, os feminismos e seus coletivos são estruturados por diversas/os atoras/es, sendo plural, não sendo discutidos de formas consensuais ou estáticas, mas tomando disputas e significados para si de forma compartilhada.

Para além de compreender a trajetória de aproximação com os movimentos feministas, buscamos também entender os significados atribuídos ao ser feminista pelas participantes do estudo. Para elas, os feminismos relacionam-se ao avanço social, pois propõem eixos necessários e indispensáveis para uma sociedade menos desigual, de forma que a luta nos movimentos seja qualificada e que todos os atores envolvidos visem ao objetivo de modificar o sistema – processo que não irá acontecer de forma linear, tamanha a significância social que ainda hoje há na herança do patriarcado em nossa sociedade.

Eu entendo o movimento feminista como um dos eixos necessários e indispensáveis para o avanço da sociedade menos desigual. (Carolina)

A gente precisa libertar a sociedade que ainda anda cheia de grades, se a gente chegar em qualquer canto hoje falar sobre o feminismo, as pessoas [ficam] olhando você de forma torta. (Unicórnio)

Essa percepção do feminismo enquanto necessário para a transformação social foi também encontrada no estudo de Fox e Quinn (2017), direcionado para o ativismo social de idosos enquanto ocupação significativa no cotidiano. Segundo as autoras, uma contribuição do ativismo nos movimentos é a possibilidade de construção de caminhos que buscam uma sociedade mais justa e igualitária para as pessoas que estão presentes nesse momento e, também, como legado para as que estão por vir.

No entanto, as participantes do estudo destacam que, para que seja possível modificar o momento atual e projetar novos futuros, é preciso que as mulheres mobilizem processos de conscientização no âmbito microssocial. Dandara, Rosa e Violeta apontam que essas transformações se dão na relação com o outro, por meio de ideias e ações práticas, que acarretem um caminho para a reinvenção de si mesmas, da própria história e da sociedade, como a garantia de direitos das mulheres e, consequentemente, criando a possibilidade de escolhas para a própria vida.

Esse lugar dos feminismos também tem a ver muito com o lugar que é da micropolítica. Parece que quando a gente fala movimento feminista, vem uma relação de macropolítica, e eu acho que tem a ver com o lugar da micropolítica, que é a relação com o outro, né (...). Outra percepção de mundo, é compreender as coisas que acontecem ao meu redor através de lentes feministas (...). Essas lutas dos vários movimentos feministas, eu acho que, para mim, é uma possibilidade de eu sempre reinventar e projetar, reinventar o meu presente e projetar novos futuros. (Rosa)

Além disso, e ao encontro das concepções de Correia et al. (2021) e de Ferrufino et al. (2019), o gênero é posto pelas colaboradoras como categoria histórica de dominação, sendo a matriz para diversas injustiças (inclusive ocupacionais) e posições de poder. Assim, as participantes entendem o feminismo como meio de se expressarem e serem ouvidas socialmente, sendo protagonistas na busca por direitos. É, também, a partir desse processo de conhecimento que os movimentos feministas protegem as mulheres, de forma que as tornam mais atentas e empoderadas

Você não precisa ficar esperando outras pessoas fazerem as coisas, você não precisa ficar condicionada a subjetividade de outra pessoa. Você não precisa ser sempre a mulher de alguém, ser a namorada de alguém, ser a filha de alguém, você pode ser você. (Agatha)

O movimento vem para a gente poder reparar de alguma forma essa história dessas mulheres, a gente entender todo esse percurso de negligência, da desvalorização dessa mulher, de violência. Eu acredito que o movimento vem, também, para combater essa opressão que é parte muito do patriarcado. (Dandara)

Em síntese, as concepções sobre ser feminista e os movimentos feministas, que perpassam pelo envolvimento ocupacional nesses lugares, em um sentido mais estrito e de caráter político, podem ser compreendidos como processos em que as mulheres, sendo sujeitos políticos, exercem os direitos sociais e a cidadania, e em que o indivíduo tem a possibilidade de contribuir com os processos de mudanças e conquistas na sociedade a qual está inserida (Morrison & Araya, 2018).

Envolvimento no/com os movimentos feministas e o cotidiano em geral

Inicialmente, em relação aos impactos do envolvimento nos movimentos feministas nas outras ocupações cotidianas, chama a atenção, no conjunto dos dados, que as colaboradoras ressaltam que não separam as pautas e as pautas dos movimentos feministas de outras ocupações em atividades do cotidiano. Para Girassol, Unicórnio e Rosa, a participação no feminismo impacta em todas as ações e nos locais que a mulher ocupa, de forma que não é possível estar em algum local, envolver-se em outras ocupações, sem assumir a postura de feminista.

Não tem como eu tirar uma camisa e “vou descansar um pouquinho, agora não quero ser feminista”. (Rosa)

Assim, as mulheres relataram que a participação e o envolvimento no feminismo são refletidos no tempo investido, de forma que esse comprometimento impacta em outras escolhas do dia a dia, sendo responsável pelas transformações nos padrões de pensamentos, atitudes e, até mesmo, “no que você consome” (Carolina). Além disso, as participantes relatam que por essas razões, diversas vezes optaram por desistir de outros projetos para dedicar-se ao movimento.

Como já aconteceu de eu ter que desvincular um projeto que queriam que eu fosse diretora de uma ação, ia me tomar muito tempo e é uma coisa que eu já desempenho no coletivo, e aí eu falei “não, eu não vou dar conta”, eu preciso abrir mão desse e ficar nos coletivos. (Dandara)

O cotidiano, é posto por Galheigo (2020) como a dimensão em que o indivíduo “adota mecanismos de resistência e inventa novos modos de ser, estar, viver e fazer” (p. 15), que também se relacionam às formas distintas de poder. Para as mulheres desse estudo, é necessário assumir posturas feministas em seus espaços-tempos, para que esses ‘modos’ imediatos (e nem sempre conscientes) possam perpassar e resultar em posturas feministas.

Congruente a essas perspectivas, percebemos que outro fator relevante nas falas das colaboradoras é a compreensão de que o envolvimento nos movimentos feministas se relaciona tanto ao enfrentamento de questões que fazem parte da estrutura macrossocial, quanto àquelas que se materializam na dimensão microssocial, nas relações mais próximas que se constroem no envolvimento nas ocupações cotidianas: “a luta é macro, mas ela também é micro” e que o “lugar do feminismo é no cotidiano” (Rosa).

Em vista disso, para pensar nas ocupações micropolíticas, é necessário partir de uma perspectiva que acolha as questões locais que fizeram parte do processo de colonização e estruturação social da realidade dos sujeitos excluídos, “subalternos, marginados y oprimidos” (Núñez, 2019, p. 673).

Na mesma perspectiva, algumas colaboradoras refletem que se envolver nos movimentos feministas implica em participar de diferentes atividades, incluindo o compartilhamento de seus conhecimentos e mobilização de processos de conscientização com as pessoas com as quais convivem, dos próprios movimentos sociais ou em espaços de trabalho ou familiares.

O feminismo tem papel que é muito importante na vida do outro. É muito importante na vida de quem faz parte, na vida de quem é ali atingido pela ideia do ser feminista. Esse impacto é visível na questão de você ter entendimento, de você saber lidar com situações, né. (Unicórnio)

Diante do processo da construção de conhecimento, a partir do envolvimento nos movimentos feministas, é possível que a mulher adquira e/ou amplie a consciência sobre os seus direitos e conquistas. Segundo Gontijo e Santiago (2020), é através da reflexão crítica sobre o seu envolvimento nas diferentes ocupações no cotidiano que as pessoas podem transformar a si e ao mundo em que vivem. O ato de tomar poder sobre si é nomeado como empoderamento feminino, o qual caminha junto com o feminismo, em um mesmo sentido de mais autonomia para as mulheres (Costa, 2012; Sardenberg, 2006). Para hooks (2017), esse processo construtivo tem como seguimento a libertação da ordem patriarcal e a tomada de consciência de mecanismos, modificando a realidade.

Esse processo de empoderamento perpassa pela percepção dos direitos que, para a colaboradora Agatha, impacta na “dimensão de você saber da subjetividade dos seus direitos e lutar por eles” e, consequentemente, na compreensão de como esses direitos são desfrutados no patriarcado, cenário contra o qual surge a luta pelos direitos das mulheres e todas as outras pessoas oprimidas. Sendo assim, a participação no feminismo amplia o olhar para a percepção de direitos, servindo como convite para que as mulheres possam falar por si mesmas, serem ouvidas, reivindicando a própria luta e as conquistas. Sardenberg (2006) destaca que as perspectivas feministas favorecem a prática autorreflexiva, assim, também, trata-se de um empoderamento no sentido de capacitar, com ênfase no “poder para”, e não no “poder sobre” (que gera outras opressões). Nesse sentido, enquadram-se as contribuições do educador Paulo Freire (2019), defendendo que, a partir do diálogo, mobiliza-se o pensar crítico e a construção da autonomia dos sujeitos no sentido da transformação de si e do mundo a sua volta.

Envolvimento no/com os movimentos feministas e as relações sociais

Outro aspecto a ser enfatizado são os impactos que os feminismos exercem sobre as relações sociais, incluindo as amorosas, as familiares e as de amizade. Ao se partir do pressuposto que a própria perspectiva da amorosidade é voltada para a heteronormatividade, exclusividade que o feminismo busca romper, durante as entrevistas, as colaboradoras ressaltaram que, quando inseridas nos movimentos, as mulheres percebem-se mais atentas para se relacionarem, evitando qualquer tipo de amarra e de reprodução de machismo que possa existir, buscando manter relacionamentos horizontais, pautados no diálogo e na escuta.

Me relaciono com homens e tem um impacto de não suportar nenhum tipo de amarras e, apesar de me relacionar com mulheres, as mulheres nessas relações também acabam [por] reproduzir ali o machismo e muitas vezes é silenciado. (Girassol)

Girassol ainda complementa que, nas relações familiares, as mulheres envolvidas no feminismo não deixam de ser feministas quando retornam para casa, assim, precisam se posicionar enquanto feminista diante dos familiares, principalmente figuras masculinas, quando se portam de maneira patriarcal.

Você volta para casa e você vai lidar também com outras engrenagens, então o seu pai, ou seu irmão, ou seu tio, ou um ente familiar, ele tem alguma atitude ali machista, você tá ali enquanto feminista. (Girassol)

É possível entender o depoimento de Girassol por meio das lentes históricas que resgatam a organização familiar como mecanismos atenuantes de tensões, que retrocedem e conservam a estrutura social sexista, em uma lógica de manutenção das opressões que reproduzem valores hierárquicos e de controle. hooks (2019) discute que a família, como opressão sexista, é a prática que primazia outras formas de dominação experimentadas ou não fora de casa, de tal forma que o homem assume papel dependente das violências para se beneficiar do patriarcado.

Ainda em relação ao contexto familiar, é relevante destacar que, conforme descrito na tabela 1, embora as participantes não tivessem filhos, houve relatos que apontaram que o feminismo também influenciou positivamente nas suas relações com as mães, passando a percebê-las para além de “serem suas mães”, enxergando-as como outras mulheres que possuem sonhos, desejos e necessidades. Os impactos também são notados nas relações com os pais, que constroem um lugar para o diálogo e mudam de comportamento, refazendo a figura do pai machista.

Foi a parte da vida que mais foi impactada pelo feminismo (...) a partir dele eu comecei a enxergá-la para além de mãe, a enxergar ela como outra mulher mesmo. (Yá)

Aquela figura de pai machista que eu tinha um tempo atrás, hoje eu não tenho mais, porque as pessoas começaram a ter entendimento do feminismo e da importância dentro da sociedade a partir dos diálogos. (Unicórnio)

As colaboradoras, ao reconhecerem as próprias mães como mulheres que também são oprimidas pelo sistema na construção de “ser mãe”, adentram as concepções e os possíveis arranjos das experiências e das representações moldadas pelo patriarcado. Dessa forma, é possível que seja desvinculada a figura que reduz a imagem à submissão, expandindo novos significados que regem o ser e o pertencer fora da domesticidade do lar (Costa, 2012; Garlito et al., 2012; Lugones, 2020).

Para além do impacto nas relações familiares, algumas colaboradoras passaram por um processo de reestruturação dos ciclos sociais. Morgana relata ter se percebido envolvida com pessoas que não valorizavam ou desencontravam com os ideais propagados pelos feminismos, optando pelo distanciamento. Diferente de Violeta, que despertou para o processo da militância juntamente com as amigas, que também estão envolvidas nos movimentos.

Todas as minhas amigas também são de movimentos feministas, mesmo que não do mesmo movimento que eu, mas todas são, então é difícil fazer qualquer coisa que não seja nesse âmbito. (Violeta)

Envolvimento no/com os movimentos feministas e as atividades de lazer e trabalho

No conjunto dos dados, o lazer também foi associado às atividades nos movimentos feministas, como é o exemplo de panfletar ou estarem reunidas com outras mulheres dentro dos espaços de política e em outros ambientes.

Como você passa a fazer parte daquilo, os seus momentos de lazer também são muito associados assim, é o que acontece depois do protesto, é o que acontece antes, o que acontece depois da reunião ou durante as reuniões, acho que o lazer mais nesse sentido. (Agatha)

Se para Beauvoir (1967) “ninguém nasce mulher”, é possível entender que ninguém nasce feminista, mas torna-se, a partir das experiências, dos meios sociais, da compreensão de mundo e da reivindicação de direitos. As relações são pontos de partida quando pensamos em ‘minorias políticas’, no sentido de que fortalecem uma história interligada a outra, carregando fardos históricos que se somam e resultam em revoluções, como é o caso dos movimentos feministas (Lugones, 2020; Ribeiro, 2018).

Outro ponto discutido e levantado pelas colaboradoras são os impactos da participação nos movimentos feministas, nos ambientes laborais e de formação profissional, sendo compreendidos como resultantes das conquistas dos movimentos. Ou seja, os espaços e as funções que essas mulheres ocupam nos ambientes laborais, conforme descrito na tabela 1, são fruto do percurso que elas e suas antecessoras lutaram para alcançar. Para além disso, os feminismos favorecem as noções de diálogos e medidas de proteção contra as violências cotidianas de cunho sexistas.

Todo mundo sempre soube que eu era, que eu sou, de fato, do movimento feminista, que eu tenho ligações político-partidárias e que eu tinha entendimento das coisas, (...) o presidente (do clube de futebol) nunca chegou em mim da forma que ele chegava para as outras meninas. De apertar, de abraçar e dá um cheirinho na cabeça comigo, porque ele sabia que comigo, como diz o ditado, “o buraco é mais embaixo”. Então, assim, esse impacto era muito forte, você ser feminista, de ter um entendimento da sociedade sobre o que são as coisas. Eu estava blindada, se eu não tivesse isso, eu era mais uma que estava ali sendo “carinhosamente” assediada. (Unicórnio)

As violências nas esferas de trabalho são expressões da vontade de dominação e não uma questão privada, reforçando estereótipos atribuídos às mulheres, como a objetificação do feminino, perpetuando violências morais, psicológicas, físicas e sexuais. Os movimentos feministas disseminam a problematização da centralidade e a naturalização da subordinação feminina nesses espaços, propagando perspectivas e entendimentos nas possíveis formas de proteção das mulheres (Tiburi, 2018).

Envolvimento no/com os movimentos feministas e a religiosidade

A participação nos movimentos feministas, para algumas colaboradoras, também influenciou em sua religiosidade, sendo relatado o afastamento da igreja por incompatibilidade ideológica.

Eu sou católica, porém eu não frequento, eu deixei de frequentar a igreja no ano passado, no ano da pandemia. E aconteceu um fato que foi muito grotesco, e que eu me solidarizei com a situação, que foi a situação da menina de 10 anos que foi estuprada, que engravidou. (Unicórnio)

Outras mulheres refletem sob a dificuldade de se encontrarem em uma religião, experiência justificada pelo processo de dominação dos corpos e de imposição patriarcal de normas e culturas, o que resultou na opção por vivenciarem a espiritualidade em uma perspectiva mais ampla. Tiburi (2018), em congruência com o relato de Unicórnio, entende que todas as instituições, incluindo as religiões, vendem suas ideologias como discurso verdadeiro, essencializando e tomando posse do corpo feminino. As ideologias feministas, assim, atuam como análise e desconstrução crítica do sistema de violência que opera por repetição de uma lógica. Não por acaso, a categoria ‘sexo’ faz parte de um sistema de crenças, sendo um signo para o controle religioso das pessoas, como forma de justificar o histórico da mulher enquadrada e destinada à maternidade.

Em complemento, hooks (2020) debate a família patriarcal, sustentada e protagonizada por concepções religiosas, correlacionada às diversas formas de violência, não só contra a mulher, mas contra crianças, de forma que rompe com a essência e destina sua criação para adultos sexistas.

Envolvimento no/com os movimentos feministas e os cuidados de si

Por fim, as atividades relacionadas aos cuidados pessoais também são impactadas pela participação nos movimentos feministas. Rosa e Tereza refletem que as lentes feministas possibilitam a compreensão de como o capitalismo, por meio da publicidade de massa, propaga padrões de corpos irreais, para que haja o consumo da sociedade em busca de uma realidade criada com o intuito de lucro sobre os corpos, tratando-se, então, de transformar essas realidades em mercadoria. Em consonância a isso, o patriarcado atua em toda escolha que diz respeito ao corpo da mulher, diante de uma discussão que é pautada no que é destinado para homens e no que deve ser destinado para mulheres.

Eu não [vou] me comparar, não comparar meu corpo a esses padrões impostos por redes sociais. (Rosa)

Acho que impacta nisso, por eu ser mulher, mas nas escolhas que tem a ver com meu corpo, nas decisões do corte de cabelo, da unha, da sobrancelha, de coisas ligadas à feminilidade, tem a ver com isso. (Morgana)

Ao reconhecer que todas as mulheres são socializadas, consciente ou inconscientemente, pelo patriarcado, para enxergar o próprio corpo como algo problemático, hooks (2020) expõe que existe uma sistematização dos percursos dos movimentos feministas como proposta desafiadora à indústria, impactando nos cuidados pessoais das mulheres, indo ao encontro com as falas das colaboradoras. Tais caminhos repercutiram em uma revolução do corpo a partir de lentes feministas, ampliando as noções de bem-estar para além de diretamente interligadas à imagem ou à aparência, mas também englobando aspectos de conscientização para a promoção de saúde, cuidados e zelo da mulher, cabendo tão somente a ela as decisões para e com o próprio corpo.

Conclusão

Os resultados deste estudo possibilitam compreender, na perspectiva das participantes, como o envolvimento nos movimentos feministas, se constrói na trajetória de vida, como é significado e como impacta em outras ocupações cotidianas. Os dados revelam que a participação no movimento feminista possibilita a percepção de si enquanto ser político, de pertencimento coletivo, apoio e união na luta para a construção de uma realidade social mais justa. Além disso, discutem que a crítica (enquanto pensamento e ação) à matriz de dominação, realizada a partir do envolvimento com os movimentos feministas, possibilita transformações nas atitudes, nos pensamentos e nas escolhas ocupacionais realizadas no cotidiano.

Os movimentos feministas, assim como do ponto de vista de que parte este artigo, e a Terapia Ocupacional buscam a emancipação do ser humano por meio de práticas do cotidiano. Assim, considerando que a Terapia Ocupacional e a Ciência Ocupacional discutem as ocupações humanas em resposta às demandas da vida cotidiana, que são influenciadas pelo contexto, o diálogo destas com as correntes feministas ampliam a visão crítica e reflexiva, dando maior visibilidade às ocupações enquanto potências para transformações sociais.

Os feminismos, como movimentos políticos e um espaço-tempo no qual habitam as lutas por liberdade das mulheres, geram impactos em todos os âmbitos e ocupações no cotidiano de mulheres jovens militantes, sendo o próprio ativismo considerado como uma ocupação, como uma busca incessante de justiça social e ocupacional. Mas, para além disso, os movimentos configuram-se, muitas vezes, como um espaço de transformação do mundo a sua volta, em que as mulheres apreendem e praticam um repertório de ideais e práticas que circulam nos campos discursivos de ação feminista.

Portanto, o presente estudo tem como limitação o não aprofundamento considerando as interseccionalidades gênero, raça e classe social, visto que estas dimensões merecem maiores investigações para o debate. Na mesma perspectiva, é importante ressaltar que não foi possível, também, abordar sobre os impactos dos feminismos com mulheres mães nos cuidados com filhos e filhas, diante do perfil das colaboradoras, contudo, foram levantadas outras pautas acerca de ser mulher feminista e do sofrimento de gênero, mas que não contemplam diretamente o objetivo deste estudo. Por essa razão, os dados da pesquisa não se esgotam neste artigo e abrem portas para que tais assuntos sejam aprofundados futuramente.

Logo, os resultados desta pesquisa podem colaborar para debates na Terapia Ocupacional a partir de perspectivas feministas, pautando a denúncia de estruturas sociais que delimitam e limitam as ocupações de mulheres, assim como a exposição de lutas e práticas do feminismo na busca incessante de justiça social e ocupacional. Contribui, ainda, para a visibilidade do conhecimento do exercício da militância nos movimentos feministas e os seus impactos no cotidiano de mulheres jovens, que lutam contra a estrutura patriarcal e machista por meio de práticas desenvolvidas no dia a dia, tendo o ativismo como uma ocupação.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

Tabela 1. Perfil das colaboradoras

Fonte: elaboração própria.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

6. Em seu livro, Tuburi (2018) utiliza “todes” com o intuito de não restringir os sujeitos a se identificarem somente como mulheres ou homens, ampliando os espaços para as diversas expressões de gênero e sexualidade, sendo um termo político e de inclusão.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.

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Referências

Arrais, M. L. S. P., Gontijo, D. T., da Silva, M. M. T. & Correia, R. L.