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Terapia Ocupacional Social e Paulo Freire: uma revisão de escopo

Recebido: 4 de setembro de 2023 • Enviado para modificações: 31 de outubro de 2023 • Aceito: 17 de dezembro de 2023

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M. (2024). Terapia Ocupacional social e Paulo Freire: uma revisão de escopo. Revista Ocupación Humana, 24(1), 64-81. https://doi.org/10.25214/25907816.1682

Terapia Ocupacional Social y Paulo Freire: una revisión de alcance

Social Occupational Therapy and Paulo Freire: a scoping review

Ana Clara Siqueira da Cunha 1

Jaime Daniel Leite Junior 2

Magno Nunes Farias 3

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

1. Discente de Terapia Ocupacional, Universidade de Brasília. Brasília, Brasil. claracunhaana@gmail.com

.........https://orcid.org/0009-0004-5692-0241

2. Terapeuta ocupacional. Especialista em Saúde Mental. Doutorando em Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, São Paulo, Brasil. leitejrjd@gmail.com

https://orcid.org/0000-0001-9595-0786

3. Terapeuta ocupacional. Especialista em Gestão Pública. Mestre e doutor em Educação. Professor, Universidade de Brasília. Brasília, Brasil. magno.farias@unb.br

https://orcid.org/0000-0002-9249-1497

Resumo

Paulo Freire é um importante autor que sustenta a práxis da Terapia Ocupacional Social. O intuito do presente trabalho é ampliar o escopo e adensar o caráter da presença acadêmica deste autor no campo da Terapia Ocupacional Social, tomando como referência produções científicas brasileiras. Como percurso metodológico, foi realizada uma revisão de escopo, com levantamento de estudos publicados em quatro periódicos brasileiros e bases de dados internacionais. As buscas foram realizadas utilizando a língua portuguesa. A revisão não definiu período inicial e considerou os artigos disponíveis online até fevereiro de 2023. Foram incluídos 18 estudos que possuem as obras de Freire em suas referências. Pedagogia do oprimido e Educação como prática de liberdade são as obras que mais aparecem nos artigos encontrados. Foi realizado o refinamento das categorias freireanas, e constatou-se a presença de 42 delas, com destaque para conscientização, com onze ocorrências, transformação/ação transformadora e práxis/ação-reflexão, ambas com dez. Com os dados obtidos pelo estudo foi possível constatar o aumento do número de publicações na área da Terapia Ocupacional Social que utilizam o referencial teórico de Freire. A obra do autor tem colaborado de forma significativa na construção de uma Terapia Ocupacional Social problematizadora e emancipatória.

Palavras-chave: mudança social, Terapia Ocupacional, educação

Resumen

Paulo Freire es un autor importante para apoyar la praxis de la Terapia Ocupacional Social. El propósito de este estudio es ampliar el alcance y profundizar en el carácter de la presencia académica de este autor en el campo de la Terapia Ocupacional Social. Como abordaje metodológico, se realizó una revisión de alcance con relevamiento de estudios publicados en cuatro revistas brasileñas y en bases de datos internacionales. Las búsquedas se realizaron solamente en portugués. No se estableció una fecha de inicio y se consideraron artículos disponibles en línea y publicados hasta febrero de 2023. El corpus estuvo constituido por 18 artículos que incluyen obras de Paulo Freire en sus referencias. Pedagogía del oprimido y Educación como práctica de libertad son las obras que más se referencian. Se depuraron las categorías freireanas y se constató la presencia de 42 de ellas, especialmente: concientización, once veces; transformación / acción transformadora y praxis / acción-reflexión, ambas, diez veces. Los resultados permiten constatar el aumento del número de publicaciones en el área de Terapia Ocupacional Social que utilizan el marco teórico de Freire. La obra del autor ha aportado significativamente a la construcción de una Terapia Ocupacional Social problematizadora y emancipadora.

Palabras clave: cambio social, Terapia Ocupacional, educación

Abstract

Paulo Freire’s work is important to support the praxis of Social Occupational Therapy. The purpose of this study is to expand the scope and deepen the character of the academic presence of Paulo Freire in Social Occupational Therapy. A scoping review was carried out as a methodological approach, including studies published in four Brazilian journals and three international databases. The searches were conducted only in Portuguese; no year parameters were stipulated. The review considered articles published at any time up to February 2023. A total of 18 studies with Freire’s works in their references were included; “Pedagogy of the Oppressed” and “Education, the Practice of Freedom” are the works that mostly appeared in the articles included. The refinement of the Freirean categories was carried out, and 42 categories were verified: conscientization, eleven times, transformation/transformative action, and praxis/action-reflection, both ten times. With the data obtained in the study, it was possible to verify the increase in the number of publications in Social Occupational Therapy that use Freire’s theoretical framework. The author’s work has contributed significantly to the construction of a problematizing and emancipating Social Occupational Therapy.


Keywords: social change, Occupational Therapy, education

4. O Golpe Militar de 1964, protagonizado por grupos conservadores da sociedade brasileira, destituiu o governo de João Goulart do poder, dando início a Ditadura Militar, que durou 21 anos.

Introdução

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, Pernambuco, Brasil, em 19 de setembro de 1921. Freire tornou-se conhecido mundialmente como educador e filósofo, participou de diversos movimentos em prol da educação e cultura popular, a partir de uma trajetória de práticas e formulações teóricas que buscaram pensar/fazer um mundo menos injusto e com maiores possibilidades de liberdade (Fernandes, 2020; Reis, 2012).

Formado em direito, Freire não exerceu a profissão, pois escolheu dedicar-se aos projetos de alfabetização, a partir de uma educação como prática da liberdade, compromisso que surgiu ainda em sua adolescência. Na década de 1960, Freire deu início a alfabetização de adultos, propondo a utilização de uma pedagogia que fosse fundamentada no diálogo e que combinasse estudo, pedagogia, política e as experiências vividas pelos educandos e, dessa maneira, construísse o saber permeado pela afetividade (Gadotti, 1996). Freire parte da ideia de que a construção de processos coletivos junto a sujeitos oprimidos (por questões de classe, raça, gênero etc.), que expandam o acesso à educação crítica e problematizadora, resultará na possibilidade desses se tornarem protagonistas e transformadores do mundo (Arelaro & Cabral, 2019).

Um momento importante na trajetória de Freire ocorreu em 1963, na cidade de Angicos, localizada no sertão do Rio Grande do Sul (Brasil), onde desenvolveu sua perspectiva de alfabetização junto a adultos trabalhadores da região, tendo como proposta trabalhar a leitura, escrita e politização dos sujeitos em 40 horas. Essa experiência ficou conhecida em âmbito nacional e internacional, em uma conjuntura política marcada pelos movimentos sociais de educação e cultura popular no Brasil, porém também atravessada pelas mobilizações das classes dominantes que buscavam a implementação de um regime político ditatorial (Germano, 1997).

Posteriormente, com o Golpe Militar de 19644, no Brasil, por conta de seus trabalhos, como a experiência de Angico, Freire foi acusado de subversão, uma vez que defendia e desenvolvia campanhas de alfabetização, sendo consideradas ameaçadoras por envolver a conscientização e formação crítica (Reis, 2012). Assim, “a repressão atingiu duramente o campo educacional, a educação popular. Entre os atingidos encontrava-se, evidentemente, Paulo Freire: preso, processado, exilado, considerado subversivo” (Germano, 1997, p. 391).

Em 1968, já exilado, Freire deu início a escrita do livro Pedagogia do oprimido, publicado em 1970, e traduzido em mais de vinte idiomas. Freire esteve em diversos países durante esse período, e, desse modo, suas propostas contribuíram para a educação e formação de diferentes pessoas e grupos (Fernandes, 2020). Com o declínio da ditadura militar, depois de 16 anos de exílio, em 1980, Freire retornou definitivamente ao Brasil, levando consigo o interesse em prosseguir com suas propostas, relacionadas ao debate sobre educação, liberdade e política, em um processo de reencontro com seu país, dialogando com os movimentos populares repreendidos durante os períodos sombrios da ditadura (Pino, 2021).

A partir de suas obras, Freire construiu diversos subsídios teórico-metodológicos que contribuíram para os estudos na área da educação, mas também em outros campos de conhecimento (Paulo & Tessaro, 2022), como para a Terapia Ocupacional (Gontijo & Santiago, 2018; Farias & Lopes, 2020; 2022a; 2022b).

Gontijo & Santiago (2018), em revisão integrativa de publicações em contexto brasileiro, entre 2000 e 2016, sobre Freire e Terapia Ocupacional, destacam a utilização das concepções freireanas na Terapia Ocupacional como fundamentais para pensar a profissão com bases mais críticas e políticas, uma vez que a articulação de constructos como diálogo, problematização e conscientização resultam em uma melhor percepção das ações cotidianas profissionais, direcionadas para promoção de um processo educativo libertador.

Ademais, Gontijo & Santiago (2018) identificam um aumento progressivo de citações do autor na área, apontando um destaque para a Terapia Ocupacional Social, que colocam Freire como norteador das ações, afirmando que: “Nos textos produzidos por autoras(es) que se identificam com o campo da Terapia Ocupacional Social, [...] observa-se a maior apropriação do referencial freireano, não somente em termos de frequência, mas sobretudo em aprofundamento das discussões” (p. 143).

Farias e Lopes (2021a), em editorial comemorativo do centenário de Paulo Freire, que aconteceu em 2021, apresentaram indícios do uso do autor pela Terapia Ocupacional brasileira desde 1970, enfatizando a busca dos profissionais da época em compreender as problemáticas sociais e pontuar o lugar técnico e político das suas intervenções. Os autores trouxeram também sobre o lugar de Freire na literatura internacional da Terapia Ocupacional, ao questionar a potência de uma ação para a transformação social. De modo importante, esse trabalho também reitera um espaço de destaque da Terapia Ocupacional Social e suas articulações com o autor, desde as primeiras elaborações de conhecimentos específicos do campo, que anunciaram categorias de Freire, como conscientização e diálogo, como fundantes na práxis.

Em revisão de escopo, realizada por Farias e Lopes (2022a), em bases de dados internacionais, identificam-se trabalhos da Terapia Ocupacional que citam Freire desde 1993, com destaque para uso do livro Pedagogia do oprimido nas obras encontradas. Nesse estudo, uma das autoras em destaque nas publicações é Roseli Esquerdo Lopes, precursora da Terapia Ocupacional Social no Brasil.

Farias e Lopes (2022a) concluem que Freire “informa de diversas maneiras a Terapia Ocupacional, em prol de uma práxis para a transformação social, embora, em boa parte das vezes, as formulações freireanas não sejam o centro dos esforços de elaboração reflexiva” (p. 1). Dessa forma, sinalizam a necessidade de maiores debates e aprofundamentos nas elaborações do autor pela Terapia Ocupacional.

Gontijo et al. (2022), em revisão de escopo em periódicos estrangeiros (excluindo artigos brasileiros) sobre o tema, realizada até o ano de 2020, identificam a primeira publicação em 1991, mas que 43% dos textos mapeados foram publicados a partir de 2015, marcando uma difusão crescente do autor a partir desta época. O trabalho afirma a presença do autor para auxiliar a práxis da Terapia Ocupacional em diferentes lugares do mundo, sendo essencial para pensar/fazer uma profissão que compreenda as complexidades sociais da vida, a partir de um compromisso ético e político.

De modo geral, a partir do panorama apresentado até aqui, notamos que Paulo Freire é um autor que tem contribuído para a Terapia Ocupacional, com destaque para a articulação de um conhecimento crítico e comprometido com a transformação social. Nesse horizonte, identificamos um espaço importante do campo de conhecimentos e práticas da Terapia Ocupacional Social, que, em alguns estudos, aparece de modo significativo (Farias & Lopes, 2021a, 2022a; Gontijo & Santiago, 2018).

A Terapia Ocupacional Social trata-se de um campo profissional que se inicia em 1970, a partir da inserção profissional no campo social (instituições prisionais, serviços para crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, asilos para idosos pobres), que apresentavam demandas para além daquelas da saúde – tradicionalmente colocadas pela profissão – para as quais as concepções provenientes dos campos da reabilitação física ou psiquiátrica se colocavam como inapropriadas e reducionistas (Barros et al., 2002).

A Terapia Ocupacional Social se consolida como um campo, a partir da análise crítica das problemáticas sociais do Brasil, que envolviam processos de exclusão social e limitações do exercício da cidadania de coletivos, sendo objetivo desse campo fortalecer uma ação em prol da articulação social, que estabelece uma relação entre a dimensão macro e microssocial da vida cotidiana. Junto a isso, há um tensionamento sobre a inadequação de referências biomédicas e da análise das condições de vida dos grupos e sujeitos, sustentada no binômio saúde-doença, que favorecem os processos de medicalização dos problemas sociais (Lopes & Malfitano, 2023).

Assim, na busca de novas perspectivas para atuar junto a sujeitos e grupos populacionais em processos de ruptura de redes sociais de suporte, forjou-se a Terapia Ocupacional Social. Como referências fundamentais para as elaborações do campo tiveram-se autores advindos das ciências humanas e sociais, como Aníbal Quijano, Karl Marx, Robert Castel, Antonio Gramsci, Homi Bhabha, e, inclusive, Paulo Freire (Lopes & Malfitano, 2023).

Nesse processo, pensando especialmente em Paulo Freire, compreendemos que ele foi um importante autor para sustentar a práxis da Terapia Ocupacional Social, de maneira que seu referencial teórico-metodológico conduz e possibilita articulações para compreender e atuar junto a populações em vulnerabilidade social (Malfitano et al., 2014).

Farias e Lopes (2020) sinalizaram que as contribuições do educador são “referenciais teóricos consistentes para se elaborar e realizar ações comprometidas com a libertação de sujeitos e grupos subalternizados, oferecendo aportes para se lidar com relações de opressão e fomentar as possibilidades de transformação” (p. 1346). A libertação se articula com uma práxis antiopressiva, em que o pensar/fazer profissional busca, junto aos sujeitos atravessados por processos de exclusão, a possibilidade efetiva de alargar as oportunidades para viver a vida cotidiana de forma mais humanizada (Farias & Lopes, 2022b).

Portanto, dialogamos com os achados de Gontijo e Santiago (2018), que identificaram a Terapia Ocupacional Social como um campo em destaque no Brasil, que faz uso de Paulo Freire nas suas produções. Também, consideramos os resultados apresentados por Farias e Lopes (2021a; 2022a), que mostram um protagonismo da Terapia Ocupacional Social no uso de Paulo Freire para suas elaborações teórico-práticas. Assim, para este momento, objetivamos apreender, em maior profundidade, a presença acadêmica de Paulo Freire especificamente nas produções da Terapia Ocupacional Social, nos voltando com mais atenção para as leituras teóricas e práticas e as lacunas presentes.

Método

Foi realizada uma revisão de escopo com intuito de mapear e identificar o uso de Paulo Freire nas produções, em formato de artigo, da Terapia Ocupacional Social. Conforme Arksey e O’Malley (2005) e Levac et al. (2010), esta metodologia é adequada para o levantamento e mapeamento de tópicos incipientes ou pouco sistematizados de uma determinada área de conhecimento, favorecendo a identificação de quais são as lacunas ainda presentes e a possibilidade de investigações futuras.

Assim, buscando apreender os usos da obra de Paulo Freire nos artigos fundamentados com base na Terapia Ocupacional Social, apresentaremos abaixo o processo de revisão a partir das cinco etapas propostas por Arksey e O’Malley (2005). De forma complementar, utilizamos o The Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) extension for scoping reviews (PRISMA-ScR) (Moher et al., 2010; Tricco et al., 2018).

Identificando a pergunta de pesquisa

A questão de pesquisa que conduziu a revisão foi: Como o referencial de Paulo Freire foi utilizado em produções em português da Terapia Ocupacional Social?

Identificação dos estudos relevantes

Realizamos buscas nos quatro periódicos brasileiros da categoria, a saber: Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional (anteriormente com o título Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar); Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo; Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional (Revisbrato) e Revista Baiana de Terapia Ocupacional5. Além disso, na busca de possíveis artigos em português, publicados em periódicos para além dos brasileiros de Terapia Ocupacional, debruçamo-nos também nas buscas em três bases de dados, a saber: CINAHL, Scopus e Web of Science. Priorizamos a busca nos periódicos brasileiros devido ao interesse nas produções desse país e em português, tendo em vista que o campo da Terapia Ocupacional Social se constitui historicamente no Brasil, local onde mantém sua maior inserção atualmente.

Os descritores foram “terapia ocupacional social” no campo de título, resumo e palavras-chave e, “Paulo Freire”, “Freire, P.” e “Freire, Paulo” no campo texto completo. Os descritores “Freire, P.” e “Freire, Paulo” foram incluídos, pois são as grafias que frequentemente aparecem nas referências dos trabalhos. As buscas foram realizadas utilizando a língua portuguesa como critério de inclusão. Na intenção de mapearmos o maior número de produções possíveis, não estipulamos parâmetros iniciais de ano e foram considerados os artigos disponíveis online até fevereiro de 2023.

Seleção dos estudos

Incluímos artigos de periódicos acadêmicos que explicitam os referenciais da Terapia Ocupacional Social e Paulo Freire, ou seja, que realizam citações e referenciam diretamente obras do autor. Consideramos artigos de pesquisa, relatos de experiência, ensaios, editoriais, entre outras produções teórico-práticas. Na busca de apreendermos as produções revisadas por pares, com maior rigor científico para publicação, optamos por não usar a literatura cinza.

Mapeamento dos dados

Elaboramos, com base em Levac et al. (2010), uma planilha no programa Microsoft Excel® para a organização dos dados contidos nos artigos, a saber: título, resumo, palavras-chave, periódico, ano de publicação, tipo de artigo, autores, filiação institucional, país dos autores e categorias utilizadas.

Reunião, organização e apresentação dos resultados

Com base na leitura dos artigos na íntegra, realizamos uma análise numérica da extensão e natureza dos estudos encontrados, construindo tabelas e gráficos com informações como: número de publicações ao longo do tempo; periódicos mais recorrentes; ocorrência de autores e países de filiação institucional; tipos de estudos, obras e categorias mais utilizadas. Posteriormente, elaboramos as sínteses dos conteúdos tratados nos artigos, o que levou à criação de eixos de análise, possibilitando a sumarização dos objetivos de cada produção. A primeira autora ficou responsável pelas buscas. O rastreio inicial e seleção dos artigos foi responsabilidade da primeira autora e terceiro autor, que fizeram a leitura completa dos textos. Em casos de dissenso, foram realizadas consultas ao segundo para a construção da decisão final sobre a inclusão do texto. O processo de análise e discussão teve contribuição de todos os autores.

Resultados

Inicialmente encontramos 33 artigos. Destes, excluímos os trabalhos duplicados (n=04), presentes em mais de uma fonte de busca. A partir disso, fizemos a leitura dos resumos, rastreio no texto e referências bibliográficas de 29 artigos. Após isso, eliminamos os artigos que não possuíam as obras de Paulo Freire em suas referências bibliográficas e não faziam articulação com a Terapia Ocupacional Social (n=15). Nesta etapa, mantivemos 18 artigos, os quais seguiram para a etapa de leitura na íntegra. Os 18 artigos foram incluídos na revisão. No PRISMA (figura 1), apresentamos o processo de mapeamento dos dados.

A partir dos critérios adotados, as produções que articulam Paulo Freire e Terapia Ocupacional Social estão compreendidas no período de 2004 a 2022. A primeira obra encontrada foi de Barros (2004) e a segunda de Lopes et al. (2011). Ou seja, entre este período, há uma lacuna de sete anos de publicações. É a partir do ano de 2011 que observamos uma constância nas publicações, com ao menos um artigo publicado por ano. Apesar dos números totais parecerem incipientes, nota-se uma considerável grandeza, se comparados com as produções totais da Terapia Ocupacional. Foram encontradas três revisões que se debruçaram sobre as produções de Terapia Ocupacional que utilizam o referencial de Paulo Freire. Gontijo e Santiago (2018) consideraram 37 produções feitas em contexto brasileiro; Farias e Lopes (2022a) analisaram 56 artigos brasileiros e não brasileiros; e Gontijo et al. (2022) analisaram 66 produções estrangeiras (não brasileiras). Comparando com este universo, os artigos que consideramos nesta revisão (n=18), equivalem a 48,65% do tamanho da primeira, 32,14% do universo da segunda e 27,27% do tamanho da terceira. Isto demonstra um certo protagonismo do campo nos usos do autor para suas elaborações teórico-práticas.

O periódico Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional publicou o maior número de artigos (n=12), seguido pela revista Interface: Comunicação, Saúde, Educação (n=2). As demais revistas que aparecem, a saber: Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, Revista O Mundo da Saúde, Revista Saúde e Sociedade, e Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional (Revisbrato) publicaram apenas um artigo.

Um total de 31 autores e coautores foram identificados, contudo, 23 deles publicaram apenas um estudo. Roseli Esquerdo Lopes (n=10), Magno Nunes Farias (n=6) e Patrícia Leme de Oliveira Borba (n=4) tiveram o maior número de publicações.

No que se refere à filiação institucional, todos os autores estão vinculados às universidades públicas brasileiras. A Universidade Federal de São Carlos aparece com o maior número de filiações (n=11), seguido pela Universidade Federal do Espírito Santo (n=5) e a Universidade Federal da Paraíba (n=4).

No que se diz respeito às obras de Paulo Freire referenciadas, Pedagogia do oprimido e Educação como prática de liberdade foram as obras que mais apareceram nos artigos analisados, totalizando dez aparições cada (tabela 1).

Também realizamos o refinamento nos artigos analisados, identificando as categorias6 de Paulo Freire mais utilizadas. Essas categorias foram sistematizadas com base na revisão de escopo já realizada por Farias e Lopes (2022a), mas também, em alguns casos específicos dessa revisão, foram organizadas novas categorias baseadas em nossa expertise sobre as obras de Paulo Freire. Assim, agregamos categorias que, em nossa leitura, possuem um sentido comum, dada a forma específica como Freire as usa, à exemplo de práxis/ação-reflexão/quefazer.

Constatamos a presença de 42 categorias freireanas, mas apenas 21 que aparecem duas ou mais vezes (tabela 2). Destas, as mais recorrentes são: conscientização, com onze ocorrências, transformação/ação transformadora e práxis/ação-reflexão, ambas com dez e opressão/oprimido/opressor, diálogo/dialógica e liberdade/libertação, citadas oito vezes e autonomia com sete.

Algumas aparecem apenas uma vez, como: ética do mercado, justa raiva, atos limites, educação bancária, ingênua confiança, ação educativa, colaboração, comunicação, ser menos, história, corpo consciente, saber popular, ato político, necrófila, sulear, pesquisa-ação, alienado, educação popular, desumanização, crítico, cultura do silêncio.

A partir da síntese do conteúdo de cada artigo, propusemos duas categorias temáticas que refletem a utilização do referencial de Paulo Freire na Terapia Ocupacional Social.

A primeira categoria, intitulada Paulo Freire em processos teórico-reflexivos, remete a estudos que utilizam o referencial freireano em diversas discussões no campo da Terapia Ocupacional Social, em um sentido mais reflexivo sobre o autor e suas categorias, no campo da prática e produção de conhecimento. A segunda, denominada Prática de terapeutas ocupacionais sociais com jovens: utilizando os aportes de Paulo Freire, remete aos artigos focalizados em práticas junto aos jovens em processo de vulnerabilidade social.

Paulo Freire em processos teórico-reflexivos7

A partir dos processos teórico-reflexivos produzidos na Terapia Ocupacional Social, tendo Paulo Freire como referencial, notamos que Barros (2004) discorreu que a Terapia Ocupacional Social utiliza de dois principais elementos de Paulo Freire, sendo eles: a conscientização e o diálogo. Estes elementos são processos centrais para que os sujeitos, individuais e coletivos, possam conhecer suas realidades e, assim, agenciar movimentos de alargar sua participação social, colocando a transformação social como uma possibilidade. Percebemos nas obras dos terapeutas ocupacionais a busca pelos aportes teórico-metodológicos de Freire com o objetivo de ampliar a visão de mundo, compreender e dialogar com diversos grupos e demandas sociais e, a partir disso, refletir sobre sua práxis técnico-política (Barros, 2004). Aspectos também sinalizados por Lopes et al. (2012).

Farias & Lopes (2021b) destacaram que a utilização dos princípios freireanos são elementares para a práxis terapêutico-ocupacional social, já que auxiliam na compreensão da vida cotidiana atravessada por relações de opressão. É nessa perspectiva que, mediante discussões críticas sobre as vulnerabilidades sociais, econômicas e culturais, a Terapia Ocupacional Social propõe a elaboração de meios em que o cotidiano seja compreendido em sua dimensão histórica, a partir das contradições macrossociais em dialética com os aspectos microssociais, e nesse contexto encontre junto aos sujeitos novas possibilidades de denunciar e traçar diferentes formas de superação das opressões. Assim, os autores colocaram que é de competência do terapeuta ocupacional estabelecer junto aos sujeitos formas de diminuir as injustiças, por meio da participação social efetiva, com base no reconhecimento das diferenças e a conscientização sobre as formas de subalternização e chances de outras articulações (Farias & Lopes, 2021a).

Alguns textos estabeleceram que o terapeuta ocupacional social é agente de ação educativa, podendo essa ocorrer em qualquer espaço. O processo de libertação discutido nas obras de Freire foi base para produções que se debruçaram sobre as vivências dos grupos em vulnerabilidade, como as juventudes negras e pobres, a população LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais e outros), população em situação de rua, imigrantes e refugiados, entre outros (Farias & Lopes, 2020, 2021b, 2022a, 2022b; Farias & Leite Junior, 2021). Nestes textos, foi proposto que estes profissionais, articulando com Freire, compreendam que a educação como prática de liberdade direciona uma práxis terapêutico-ocupacional antiopressiva e libertadora, estimulando as discussões em diversos processos de transformação político e social, participação cotidiana e inserção social dos sujeitos.

Pastore e Sato (2018) apontaram que as elaborações freireanas perpassam os pensamentos críticos-reflexivos e imergem na discussão sobre os processos de pesquisa no campo social. A relação dialógica de Freire é importante para o processo de formação intelectual dos terapeutas ocupacionais sociais, já que nesse processo o pesquisador consegue construir junto aos sujeitos um espaço de formação de vínculo que é possível compartilhar e viver novas experiências.

Assim, Gontijo e Santiago (2020) evidenciaram que a difusão de Paulo Freire na Terapia Ocupacional, bem como no campo social, auxiliou no fortalecimento do profissional enquanto agente de transformação social, bem como na compreensão das intervenções utilizadas no cotidiano de trabalho.

Prática de terapeutas ocupacionais sociais com jovens: utilizando os aportes de Paulo Freire8

A partir de Paulo Freire, os fazeres terapêutico-ocupacionais junto a jovens pobres, principalmente os de escolas públicas, baseia-se no comprometimento pela democratização da educação e da participação social.

Os estudos de Lopes et al. (2011, 2013) e Lopes, Borba e Cappellaro (2011) apresentaram que terapeutas ocupacionais, que atuam junto a jovens na escola, tem como potência a criação de espaços onde seja possível que esses sujeitos elaborarem reflexões sobre si e as problemáticas sociais vivenciadas no cotidiano escolar e territorial. Para estas autoras, as trocas de experiências, tendo como centro o diálogo, são importantes para o fortalecimento individual e coletivo. Ao conhecer suas potencialidades, os jovens podem criar estratégias para o processo de construção da consciência crítica, engendrando formas de inserção social e projetos de futuro.

Pereira et al. (2014), Bardi et al. (2016) e Sabino et al. (2017) apresentaram as oficinas de atividades como o recurso mediador de aproximação com os jovens. Com isso, as técnicas empregadas e o caráter lúdico foram importantes, nas realidades apresentadas, para favorecer as vivências que colaboraram para o processo de transformação e de autonomia, conforme postulados nas reflexões freireanas. Nesta direção, Pan e Lopes (2022) colocaram que a leitura dos profissionais, a partir de Freire, nas atividades elaboradas com as juventudes, potencializaram o sentimento de acolhimento dos sujeitos no espaço de intervenção, tendo em vista a conscientização, a convivência e a participação.

Alves et al. (2013), em intervenção com jovens marcados pela pobreza, sob a óptica de Freire, discorreram sobre a importância de salientar o processo de desenvolvimento, empoderamento e protagonismo na participação na escola e em outros cenários da vida cotidiana, haja visto os atravessamentos da vulnerabilidade social nos diferentes cenários da vida cotidiana.

Discussão

Paulo Freire é um autor que está presente desde o início da história da Terapia Ocupacional Social. Suas obras influenciaram diretamente a constituição deste campo (Lopes & Malfitano, 2023). Nesta direção, a partir da presente revisão, evidenciamos que a Terapia Ocupacional Social utiliza de referenciais teórico-metodológicos freireanos para compreender a realidade dos sujeitos, individuais e coletivos. Nesse sentido, as atividades propostas por estes profissionais intencionam a interpretação dos contextos e experiências em que os sujeitos vivem e a emancipação dos indivíduos e grupos das situações opressivas. Trata-se de uma busca de análises coletivas que, em uma dialética com o sujeito, contribuem para o debate sobre a importância das ações comunitárias e territoriais – macro e microssociais.

Estas proposições vão ao encontro das elaborações de Barros et al. (2007). As autoras apontam que a participação comunitária dos sujeitos se fundamenta em dois princípios: primeiro, no comprometimento que busca a resolução de problemas e pode resultar na emancipação social e política da população; segundo, na proximidade com a cotidianidade. Sendo assim, a participação comunitária permite que os sujeitos se compreendam como parte do coletivo, tornando as formas de decisões mais democráticas. Isto favorece o sentimento de pertencimento de todos, bem como a possibilidade de autonomia da própria pessoa. Ainda segundo as autoras, a emancipação social e política são princípios que devem ser discutidos através do diálogo e da compreensão das diferentes realidades.

Nesse sentido, os textos analisados exploram de modo importante a ideia de consciência emancipatória ou conscientização de Paulo Freire, uma categoria que propõe um movimento dialético entre emancipação individual e emancipação social, central na análise histórica do campo da Terapia Ocupacional Social (Barros et al., 2007; Freire, 2001).

Nos estudos encontrados durante a revisão de escopo, conscientização é uma categoria que aparece empregada por terapeutas ocupacionais como base para a noção do processo terapêutico-ocupacional social. Ela se refere à tomada de consciência através da análise crítica das opressões que afligem os sujeitos, em espaços de compartilhamento de experiências e de criação de novos cenários de vida. Na prática com jovens, esse processo é necessário para pensar/fazer o cotidiano – e suas possíveis dimensões de alienação – em busca de mais liberdade e/para participação na vida social, que se estrutura com base em uma intervenção pautada no diálogo/dialógica, tendo em vista a consolidação de um espaço onde todos coloquem suas narrativas em jogo, para construir processos conjuntos de mudança (Barros, 2004; Farias & Lopes, 2022b).

Além disso, as categorias transformação/ação transformadora são compreendidas por terapeutas ocupacionais como processos que dão o caráter de intencionalidade na intervenção, aquilo que se objetiva. Através destas intervenções, terapeutas ocupacionais atuam junto aos sujeitos em busca da transformação da realidade, estimulando-os a refletirem sobre si e os outros. Isto faz com que estes desempenhem um papel importante na superação das relações opressoras e no enfrentamento das desigualdades, contribuindo com a concretização do processo de mudança social (Gontijo & Santiago, 2020; Lopes et al., 2011).

Em vários textos desta revisão (Farias & Leite Junior, 2021; Farias & Lopes, 2020, 2021a, 2021b, 2022a, 2022b; Alves et al., 2013), esse processo é compreendido pela categoria de opressão/oprimido/opressor, para apreender o conjunto de injustiças que envolvem os sujeitos, dentro de uma estrutura social que compreende a dimensão subjetiva e objetiva do processo de humanização (Farias & Lopes, 2022b). Nesse sentido e tendo em vista que a libertação é “a ação e a reflexão dos homens [seres humanos] sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 1970, p. 79), o uso da categoria de liberdade/libertação, nos artigos analisados (Lopes, et al., 2011; Lopes, et al., 2013; Farias & Leite Junior, 2021; Farias & Lopes, 2020, 2021a, 2021b, 2022a, 2022b; Gontijo & Santiago, 2020), tem sido incorporada de modo importante para direcionar o pensar/fazer terapêutico-ocupacional social, conforme proposto no trabalho de Farias e Lopes (2021a).

Foi constatado que o autor aparece em diversos estudos e práticas com jovens em ambientes escolares e territoriais (Lopes et al., 2011); descrevendo a atuação da Terapia Ocupacional Social e analisando recursos (Alves et al., 2013; Bardi et al., 2016; Lopes et al., 2013; Pereira et al., 2014; Sabino et al., 2017). Assim, Paulo Freire se destaca como base para o desenvolvimento de ações educativas junto à população jovem, em diversos contextos. Podemos inferir que essa presença se deve à notoriedade das práticas do autor com jovens e adultos. É relevante considerar que o legado de Freire e suas contribuições iniciais estão focadas no processo educacional dessa população (Arelaro & Cabral, 2019).

A partir da análise dos estudos, foi possível captar que, apesar da presença das categorias de Freire nas publicações, elas são abordadas, em algumas vezes, de maneira concisa. Estas considerações coadunam com os achados de Farias e Lopes (2022a) e Gontijo et al. (2022) sobre a presença de Paulo Freire na Terapia Ocupacional de modo geral, o que reforça a necessidade de explorar e refletir mais solidamente sobre as compreensões freireanas. Porém, vale destacar que existem obras que se aprofundam de modo substancial no diálogo de Freire com a Terapia Ocupacional Social, como de Farias e Lopes (2020; 2021b; 2022b), indicando o esforço do campo para a solidificação dessa apropriação.

Sobre a produção da Terapia Ocupacional Social e Paulo Freire, temos como hipótese que a comemoração do centenário do autor, em 2021, parece ser um momento de resgate e fortalecimento das produções que o tinham como base teórica e analítica. Este marco gerou mobilização no Brasil, e fora dele, com diversas atividades e publicações que retomaram sua importância nas diferentes áreas de conhecimento do mundo. Na Terapia Ocupacional, Farias e Lopes (2021a) escreveram um editorial para os Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, rememorando como o autor foi elementar para o desenvolvimento da profissão.

De outro lado, houve também o V Simpósio Internacional de Terapia Ocupacional Social (SITOS), realizado no período de 09 a 11 de novembro de 2022, tendo como tema Denúncia dos invisíveis e anúncio dos possíveis. O Simpósio promoveu um espaço de diálogo e reflexões sobre a profissão, colocando em destaque Paulo Freire e suas elaborações. O autor, com seus subsídios teórico-metodológicos, auxilia a práxis do terapeuta ocupacional social ao compreender a importância de denunciar as opressões e favorecer espaços de emancipação aos sujeitos marginalizados. Explicitamente, Pan e Almeida (2023) colocaram que “na quinta edição do SITOS tomamos Paulo Freire como inspiração ao propor como temática a ‘denúncia dos invisíveis e o anúncio dos possíveis’” (p. 2). Algumas das temáticas abordadas foram as juventudes; as desigualdades sociais e culturais, com destaque nos marcadores sociais da diferença; as ações da Terapia Ocupacional Social no enfrentamento de questões territoriais; práxis antiopressiva; a atuação na escola pública com jovens; os trabalhos com crianças em Moçambique, África.

Esse cenário fértil de acontecimentos coaduna com os resultados apresentados, que indicam que 2021 e 2022 foram os anos com o maior número de artigos publicados que relacionaram Paulo Freire e a Terapia Ocupacional Social.

Os achados da revisão também nos direcionaram para dois caminhos de possibilidades na Terapia Ocupacional Social. O primeiro deles é apreender como os referenciais freireanos podem contribuir para o aperfeiçoamento e criação de recursos e tecnologias sociais, sendo estas, técnicas, produtos, metodologias, entre outras ferramentas replicáveis, que funcionam como mediadoras no processo relacional com a comunidade (Lopes et al., 2014).

Categorias ainda pouco exploradas do autor, como aquelas apresentadas nos resultados e na tabela 2, são essenciais para que sejam ampliados os fazeres técnicos e políticos, a práxis, o quefazer, realizando-os de maneira antiopressiva, contribuindo para a proposição de cuidado que intencione a construção de mundos possíveis. Além disso, o investimento na compreensão da obra de Freire, de maneira cada vez mais ampla e robusta, possibilita que o movimento de turismo freireano não seja reproduzido, ação descrita por Freire (2001) como o ato de pesquisadores o utilizarem de modo pouco aprofundado.

O segundo caminho é o favorecimento que Freire traz para a construção de novas formas de produzir conhecimento em Terapia Ocupacional Social. Suas elaborações também servem de instrumento para a realização de pesquisas, nas quais os sujeitos investigados possam participar de maneira mais ativa, sendo agentes concretos no desvelamento da realidade encontrada e na proposição de novas estratégias para a subversão da armadilha neoliberal progressista (Farias & Lopes, 2023).

Considerações finais

A partir da presente revisão, notamos que nos últimos anos há um número crescente de publicações no campo da Terapia Ocupacional Social que utilizam o referencial de Freire. O número de produções sobre Freire e Terapia Ocupacional Social, analisado de forma comparativa com outras revisões, atesta a proeminência do campo, numa dimensão brasileira e mundial.

Ficaram evidentes as colaborações do autor na construção de uma Terapia Ocupacional Social problematizadora e intencionada para a transformação das lógicas de injustiça social. Ainda que atestada esta realidade, salientamos que a produção contínua de conhecimento, articulando os postulados do autor, é necessária. Isto possibilitará a superação de usos concisos de Freire, além de favorecer novas formulações e aprofundamentos.

Em uma sociedade desigual, o cotidiano traz em si as marcas das relações de opressão que atravessam a existência dos sujeitos, individuais e coletivos, e dificultam o acesso a bens sociais e reconhecimento de seus modos de vida. Assim, há a necessidade de produção e busca contínua por movimentos de resistência e luta pela garantia de direitos, sendo o terapeuta ocupacional um agente fundamental nesse processo, e Paulo Freire mostra-se um autor que possibilita o fortalecimento da busca dessa práxis.

A escolha das bases de dados, os periódicos brasileiros indexados e artigos em português, são parte das limitações deste estudo. Consonantes com as proposições para a produção de revisões de escopo, não avaliamos a qualidade ou o nível de evidência dos artigos analisados. Identificamos lacunas e temas recorrentes, oferecendo subsídios para a continuidade do desenvolvimento do campo, contudo, não elencamos tópicos prioritários de ação. Ainda, não foram realizadas avaliações do nível de evidência das conclusões dos artigos revisados, denotando uma perspectiva inicial e exploratória. Futuras investigações que consigam ter acesso e sistematizar outras fontes de dados, incluindo a literatura cinza, poderão corroborar com os achados que tivemos, ou ainda, demonstrar usos de Paulo Freire na Terapia Ocupacional Social que extrapolam nossas apreensões feitas nesta investigação. Com isso, será possível prosseguir apreendendo a práxis terapêutico-ocupacional social que, inspirada nos postulados de Paulo Freire, está comprometida com a construção de mundos mais possíveis.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

5. A Revista Baiana de Terapia Ocupacional teve seu trabalho descontinuado em 2014.

Figura 1. Fluxograma do processo de seleção usando o modelo PRISMA

Fonte: elaboração própria.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

Fonte: elaboração própria, a partir de dados do CINAHL, Scopus, Web of Science, Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, Revisbrato, Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo (fevereiro de 2023)..

Figura 2. Relação cronológica de publicação/ano

6. Compreendemos as elaborações de Freire como categorias, que dizem respeito a inter-relação de conceitos que envolvem os princípios articulados pelo autor. Entendemos essas categorias como um agrupamento de elementos e ideias, que são interdependentes entre si (inclusive com outras categorias) (Minayo, 2001; Farias & Lopes, 2022a).

Tabela 1. Obras de Freire e o número de citações nos artigos encontrados

Fonte: elaboração própria.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

Tabela 2. Categorias que aparecem duas ou mais vezes nos trabalhos analisados e frequência

Fonte: elaboração própria.

7. Os artigos alocados nessa categoria foram: Barros (2004), Farias & Leite Junior (2021), Farias & Lopes (2020, 2021a, 2021b, 2022a, 2022b), Gontijo & Santiago (2020), Lopes et al. (2012), Pastore & Sato (2018).

8. Os artigos alocados nessa categoria foram: Alves et al. (2013), Bardi et al. (2016), Lopes et al. (2011a, 2011b, 2013), Pan & Lopes (2022), Pereira et al. (2014), Sabino et al. (2017).

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.

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Referências

Siqueira Da Cunha, A. C., Leite Junior, J. D. & Nunes Farias, M.