• reflexión •
Recebido: 22 de agosto de 2024 • Enviado para modificações: 17 de setembro de 2024 • Aceito: 7 de novembro de 2024
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G. (2025). Neoliberalismo e globalização: a Terapia Ocupacional como resistência e potência nas vivências coletivas do território. Revista Ocupación Humana, 25(1), 60-70. https://doi.org/10.25214/25907816.1803
Neoliberalismo e globalização:
a Terapia Ocupacional como resistência e potência nas vivências coletivas do território
Neoliberalismo y globalización: la Terapia Ocupacional como resistencia y potencia en las experiencias colectivas del territorio
Neoliberalism and globalization: Occupational Therapy as power and resistance in collective experiences of the territory
Hoffman Miranda de Oliveira 1
Magno Nunes Farias 2
Grasielle Silveira Tavares 3
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G.
1. Terapeuta ocupacional. Associação de Mães, Pais, Amigos e Reabilitadores de Excepcionais. Brasília, Brasil.
hoffmanhmo2@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-2888-0204
2. Terapeuta ocupacional. Especialista em Gestão Pública. Mestre e doutor em Educação. Professor, Universidade de Brasília. Brasília, Brasil.
magno.farias@unb.br
https://orcid.org/0000-0002-9249-1497
3. Terapeuta ocupacional. Mestra em Saúde na Comunidade. Doutora em Saúde Pública. Docente, Universidade de Brasília. Brasília, Brasil.
grasiellet@gmail.com
Resumo
Considerando que os efeitos da contemporaneidade no território e nas relações comunitárias abrangem problemáticas sociais, políticas, econômicas e culturais, neste artigo, objetivou-se suscitar um debate sobre as repercussões do neoliberalismo e da globalização na participação social dos sujeitos. A partir de discussões de diferentes autores dos campos das Ciências Sociais, da Filosofia e da Geografia, buscou-se compreender a potência da atuação da Terapia Ocupacional com base nos conhecimentos sobre território e comunidade, que podem oferecer um rico repertório em prol da promoção da participação social — quando apreendidos a partir da crítica às lógicas capitalistas do neoliberalismo e da globalização. Assim, entender a complexidade das repercussões sociais contemporâneas nas vivências dos sujeitos, individuais e coletivas, é fundamental para o pensar/fazer terapêutico-ocupacional, tornando possível o fortalecimento de processos que combatam e subvertam a globalização neoliberal — a fim de caminharmos para a promoção de encontros solidariamente orgânicos.
Palavras-chave: território sociocultural, coesão social, política econômica, Terapia Ocupacional
Resumen
Considerando que los efectos de la contemporaneidad en el territorio y en las relaciones comunitarias abarcan problemáticas sociales, políticas, económicas y culturales, este artículo tuvo como objetivo plantear un debate sobre las repercusiones del neoliberalismo y la globalización en la participación social de los sujetos. A partir de las discusiones de diferentes autores en los campos de las Ciencias Sociales, la Filosofía y la Geografía, se buscó comprender el poder de la Terapia Ocupacional a partir del conocimiento sobre el territorio y la comunidad, que puede ofrecer un rico repertorio a favor de la promoción de la participación social, cuando se aprehende desde la crítica a las lógicas capitalistas del neoliberalismo y la globalización. Entender la complejidad de las repercusiones sociales contemporáneas en las experiencias de los sujetos, individuales y colectivos, es fundamental para el pensamiento/hacer terapéutico-ocupacional, permitiendo fortalecer procesos que combatan y subviertan la globalización neoliberal, avanzando hacia la promoción de encuentros orgánicos solidarios.
Palabras clave: territorio sociocultural, cohesión social, política económica, Terapia Ocupacional
Abstract
Considering that the effects of contemporaneity on the territory and on community relations encompass social, political, economic and cultural problems, this paper aimed to raise a debate on the repercussions of neoliberalism and globalization on the social participation of subjects. From discussions by different authors in the Social Sciences, Philosophy and Geography fields, we sought to understand the power of Occupational Therapy based on knowledge about territory and community, which can offer a rich repertoire in favor of the promotion of social participation – when grasped from the criticism of the capitalist logics of neoliberalism and globalization. Understanding the complexity of the contemporary social repercussions on the individual and collective experiences of subjects is fundamental for therapeutic-occupational thinking/doing, making it possible to strengthen processes that combat and subvert neoliberal globalization - moving towards the promotion of solidarity-based encounters.
Keywords: sociocultural territory, social cohesion, economic policy, Occupational Therapy
Introdução
As relações comunitárias e territoriais variam conforme os aspectos culturais, políticos, econômicos, históricos e sociais, que demarcam diretamente a vida de sujeitos, grupos e populações. Dentro dessa trama, a Terapia Ocupacional possui um lugar possível para contribuir de forma crítica a partir da compreensão do cotidiano que demarca essas relações, tornando-se agente, junto aos sujeitos, de processos significativos que envolvem a subjetividade, a cultura e o acesso aos bens sociais, a procura de brechas ao que parece, por vezes, intransponível (Bianchi & Malfitano, 2020; Galheigo, 2003).
As diferentes formas de viver o território e a comunidade podem promover (ou não) a participação e a inserção social, a depender das lógicas de exclusão que podem marcar os cotidianos. Assim, este trabalho discorre sobre a resistência da Terapia Ocupacional para promover experiências nesses contextos com mais liberdade, autonomia e interdependência, apesar de todas as problemáticas macrossociais que pode perpassar os sujeitos individuais e coletivos, considerando, especialmente, os desafios contemporâneos do neoliberalismo e da globalização.
Farias e Lopes (2022; 2023) discorrem sobre os desafios de se fazer uma Terapia Ocupacional antiopressiva em um contexto marcado pelo neoliberalismo — fortemente meritocrata. Assim, a profissão, em muitos momentos, tem sido instrumento dessa lógica, firmada na prática pautada na individualização, na (re) produção de violências, na neutralidade e na ausência de uma leitura história e política — do sujeito social — sobre as problemáticas.
Nesse sentido, é essencial entender as repercussões das problemáticas que podem diminuir as possibilidades de participação social, para assim ser possível atuar de forma resistente e potente enquanto terapeutas ocupacionais, coloca-se em tela aqui, especialmente, o combate às lógicas do neoliberalismo e da globalização, com influências para a pesquisa de autores dos campos de conhecimento das ciências sociais, filosofia e geografia. Esse é o caminho proposto neste artigo crítico-reflexivo, enfatizando que a potência é discutida aqui como uma intencionalidade a ser direcionada para a ação.
Influências macrossociais nas vivências territoriais e comunitárias
Considera-se território como espaço geográfico delimitado onde vivem os sujeitos, individuais e coletivos, constituído através da história, que abrange diferentes modos de vida em pluralidade cultural, com grupos de condições socioeconômicas específicas e maneiras diferentes de articular as trocas e os vínculos sociais, como descrito por Barros et al. (2002). Nesse sentido,
o Território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem [ser humano] plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência. (Santos, 1999, p. 7)
Em muitos campos de conhecimento, como na Terapia Ocupacional, esse termo é associado à noção de comunidade, que enfatiza os aspectos relacionados ao pertencimento e aos vínculos sociais. “O conceito território sugere uma combinação de espaço, processo e relação, superando a definição de um espaço geográfico físico. Já comunidade traz a noção de coletividade, redes, pertencimento e identidade” (Bianchi & Malfitano, 2020, p. 621, grifos das autoras).
Assim, território e comunidade são conceitos acionados para compreender os modos de vida, as relações sociais e o uso (ou não) dos bens sociais, materiais e simbólicos, que marcam a vida cotidiana coletiva, dando forma as experiências vividas em um lugar — marcados por processos macrossociais. Nesse debate, coloca-se em perspectiva as contradições da sociedade capitalista, especialmente as faces que envolvem o neoliberalismo e a globalização, enquanto processos que se retroalimentam e acarretam consequências diretas nas formas de uso do território e das relações comunitárias (Santos, 1987; Venugopal, 2015; Wirth, 1973;).
A seguir, serão desenvolvidas essas relações complexas, a partir do entendimento do neoliberalismo e da globalização como facetas do modelo capitalista — em lógicas macro e microssociais, criados para a sua própria sobrevivência e perpetuação, que articulam relações sociais e modos de vida (Freire, 1981; Han, 2018).
Para compreender esse processo parte-se, especificamente, das crises do capitalismo em meados dos anos 1950, que eram interpretadas como inevitáveis em um Estado de bem-estar social, pois afirmava-se que assegurar direitos reivindicados pelos trabalhadores, conselhos e sindicatos prejudicava o lucro das empresas e ocasionava a falência do próprio Estado. Foi nesse contexto que a organização internacional Mont Pelerin, que reune pensadores liberais, ganhou força. Esse grupo, de cunho classista e imperialista, foi fundado em 1947, articulado por Friedrich Hayek, para promover os valores e os princípios do liberalismo, dando forma ao neoliberalismo como se conhece hoje, que marca o ressurgimento do liberalismo clássico na economia globalizada (Klein, 2008).
O neoliberalismo, doutrina política e socioeconômica, se popularizou em 1978 no Chile, a partir do golpe de Estado e da ditadura de Augusto Pinochet, utilizado primariamente por críticos para se referir a um modelo econômico de desmonte do Estado de bem-estar social, em prol da desregulamentação dos mercados, impactando, de modo importante, todo o contexto latinoamericano, sobretudo para alastrar essa perspectiva em todo território. Com base nos princípios do grupo Mont Pelerin, entende-se que essa elaboração consolida um movimento imperialista, para fomentar os interesse das classes dominantes, a partir de um capitalismo dependente e marcado pela exploração contínua dos países de “terceiro mundo” (Venugopal, 2015).
A teoria neoliberal enxerga o Estado como possuidor de mínima influência, inclusive de suas responsabilidades sociais e na garantia de direitos fundamentais. Assim, é excluído do Estado as problemáticas de justiça e de proteção social que têm o objetivo de reduzir desigualdades e promover equidades (Nunes, 2003). Para Han (2018) nesta perspectiva, se dissemina um individualismo aliado à exploração e à otimização pessoal voluntária, disfarçada de liberdade.
O neoliberalismo afeta todos os âmbitos da vida humana, a partir de uma lógica de dominação por produção autoimposta, no qual o propósito da produção e do lucro é o objetivo que permeia toda a esfera cotidiana.
Wirth (1973) escreve sobre a segmentação da imensidão da cidade urbana, por meio da variedade de profissões, modos de vida, status econômico e social e das ideologias dos indivíduos e de coletivos, que produzem um enfraquecimento dos vínculos comunitários. O autor aponta, em uma análise comparativa sobre as sociedades urbanas e rurais, indicando a ruralidade caracterizada pela solidariedade social e pela participação comunitária, enquanto que a urbanidade é marcada por uma liberdade relativa ao controle pessoal e emocional exercido por grupos próximos e privados.
Bauman (1998) traz em sua escrita os efeitos da não convivência em uma sociedade densamente povoada, que provocam uma espécie de dessensibilização ao outro, que, aliado a demais fatores sociais, reforça a intolerância ao desconhecido, que estimula as pessoas a se agruparem em grupos sociais cada vez mais restritos, em que encontram identificação, mas acabam tornando a convivência comunitária fragmentada, com pouca possibilidade da consolidação de redes amplas de cuidado, marcadas pela interdependência e pela solidariedade — em “redes” restritas as relações de status social e econômico, por exemplo.
Dessa forma, Somé (2003), em diálogo com Wirth (1973) e Bauman (1998), se faz bastante pertinente ao considerar que a vontade de recriar uma comunidade maior é engolida pela individualização ou “pessoalização” cada vez mais intensa. A fragmentação se coloca como a alternativa restante para (tentar) recriar uma noção de comunidade.
Além dos fatores mencionados, Bauman (1998) reflete que as pessoas que detêm domínio econômico costumam se isolar em suas propriedades e condomínios fechados, com muros reforçados, para evitarem contato, refletindo tanto uma questão de segurança quanto de intolerância a pessoas diferentes. Além disso, a violência e a falta de segurança, que desafiam a constituição de comunhão dentro do território, têm sua raiz na desigualdade social promovida pelo capitalismo, por sua vez, agravado no neoliberalismo — tais questões, especialmente presentes no Brasil, envolvem a redução de políticas sociais — fragilizando os caminhos da cidadania (Resende & Andrade, 2011).
Dessa maneira, esses processos fermentam, legitimado pelo Estado, o isolamento proposital, e, individualmente justificado pelas vulnerabilidades sociais, que envolvem renda e status social, o que dificulta a constituição de vínculo relacionado a pessoas desconhecidas e também de um processo orgânico na construção de redes comunitárias entre a população de um território.
Dowbor (2020) reflete que o mercado capitalista, para produzir a demanda de seus serviços e produtos, faz com que, antes, sejam escassos, que não sejam públicos, como a privatização dos espaços de lazer e esporte. Essa prática diminui o acesso a bens, serviços e direitos à população economicamente vulnerável, que, por sua vez, traz como consequência uma participação social precária e insuficiente.
O capitalismo neoliberal sacrifica o lugar que existiria para a participação sociocultural — a festa (Han, 2021), enquanto direito fundamental, que fomentaria a comunhão como fim em si mesma, para dar lugar ao descanso momentâneo, como apenas um tempo de se recuperar para voltar à produtividade. O momento de festa é quando a vida se refere a si mesma, sem um objetivo externo, possui um significado de contemplação, como fim — é quando a vida acontece, pois não existe um objetivo com ela, e sua intenção não é para um fim posterior de produção. O avanço neoliberal distanciou as pessoas por meio de um regime de autoprodução e competitividade. “Desse modo, o tempo dominado hoje pela coação de produção é um tempo sem festa. A vida empobrece, paralisada em estado de sobrevivência” (Han, 2021, p. 42)
O descanso contemporâneo se torna uma espécie de descanso produtivo, já que o objetivo final é a perpetuação do processo de trabalho produtivo. A partir dessa lógica, a sociedade neoliberal determina o individualismo ao sujeito, com preceitos implícitos de que as atividades que não são laborais e produtivas, devem ser desenvolvidas apenas para que seja possível suportar as formas de exploração laboral. Nesse sentido, a produtividade nunca possuirá um fim, não existe uma conclusão, seu fim é sempre em direção de mais produção. As populações periféricas e economicamente vulneráveis são agravadas por esse processo de trabalho exaustivo e compulsório, pela privação de direitos trabalhistas e trabalho informal, que faz parte da agenda neoliberal (Han, 2021).
Nessa agenda, Santos (1987) traz exemplos de mudanças no estado de espírito da população a partir da inserção neoliberal na sociedade contemporânea, com a “supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por sociedades competitivas que comandam a busca de status e não mais de valores” (Santos, 1987, p. 23-24, grifos do autor). Assim, alimentando uma compreensão do sujeito como empreendedor de si, e “incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito” (Han, 2018, p.11), fragmenta as relações que valorizem a vida comunitária nos territórios.
Nesse sentido, Somé (2003), ao discorrer sobre a vida ocidental e as relações que se estabelecem com os outros, ressalta o valor da noção de comunidade na sociedade, todavia, sinaliza as dificuldades de estabelecer relações comunitárias fortalecidas, que a todo momento vão sendo minadas pelas lógicas capitalistas — como no neoliberalismo.
Santos (2011) esclarece que o trabalho nas práticas territoriais, dentro da lógica do capital, possui função para fins externos, não produzindo o cimento regional, que pode ser interpretado como um meio de conexão relacional de uma comunidade — uma solidariedade orgânica. Quando se conhece quem trabalha no restaurante, no mercado, na feira e nos serviços em geral, existe uma coesão de relações dentro do território.
A globalização também está intimamente relacionada ao neoliberalismo, autores indicam a globalização do neoliberalismo como forma dominante das relações políticas, econômicas, culturais e sociais. Assim, compreende-se a globalização como um processo e o neoliberalismo com uma escolha política, que desenvolve esse processo a partir de princípios específicos, tomando-os como única perspectiva possível na sociedade (Niemeyer, 2006).
Santos (1987; 1999) sinaliza que a globalização, nas relações capitalistas, é a integração do mundo marcado especialmente pela busca da homogenização das culturas, das economias e das relações sociais e políticas — centralmente consolidadas pela tirania do dinheiro e das desigualdades mundiais, “a versão política dessa globalização perversa é a democracia de mercado” (Santos, 2005, p. 259).
Na globalização, para Han (2021), a cultura perde seu significado sagrado e se torna mídia, consumível, multiplicada e globalizada, incidindo na diminuição das relações de pertencimento local, identificação e alteridade, que fortalecem as relações territoriais e comunitárias. As relações entre:
O local e o global, em outras palavras, tornaram-se inextricavelmente entrelaçados. Sentimentos de ligação íntima ou identificação com lugares ainda persistem. Mas eles mesmos estão desencaixados: não expressam apenas práticas e envolvimentos localmente baseados, mas se encontram também salpicados de influências muito mais distantes. (Giddens, 1991 p. 98)
Giddens (1991) pontua que, ao mesmo tempo que as relações sociais se tornam mais acessíveis por meio da distância, há a necessidade de resistência para o fortalecimento de uma identidade cultural regional, para superar de certa forma o liquefazer da influência global neoliberal. A partir dos conceitos citados, podemos compreender que o que era exclusivamente local, ritualístico, íntimo, se tornou disperso e desterritorializado.
Nessa lógica, existem populações e comunidades que em um processo de globalização, marcado pela história do colonialismo, por exemplo, vivenciam marcas mais intensas de exploração do capitalismo e do seu regime neoliberal — como a América Latina. Diversas populações buscam traçar outra forma de existirem e de resistirem quanto ao acesso à cultura e à participação social e comunitária, fundada na solidariedade, que constroem frente aos processos de opressões, o que produz uma economia, cultura, discurso e política territorializada (Santos, 1996; 2000).
Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É desse modo que, gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como um alimento da política dos pobres, que se dá independentemente e acima dos partidos e das organizações. (Santos, 2000, p. 145)
À medida em que faltam investimentos à participação social comunitária e aos espaços de convivência fornecidos pelo Estado, podem surgir movimentos e iniciativas orgânicas, culturais, ricas em pertencimento e participação social, que subvertam o paradigma neoliberal de consumo e produtividades (Hall, 2006).
Derivado da própria globalização, o conceito de hibridismo cultural é relevante neste trabalho por se tratar da mescla de culturas, que, dessa forma, são criadas novas formas do ser cultural, que refutam o passado estabelecido, abrindo possibilidades para novas identidades culturais. Portanto, essa perspectiva tira de centralidade a integração entre os mundos a partir do mercado e da exploração, no sentido do que Santos (2000; 2005) vai chamar de outra globalização, cuja solidariedade e o encontro com a diferença sejam as bases.
Ao entender o processo de globalização — especialmente pelos meios de comunicação e as migrações de massa — cabe procurar subverter sua face neoliberal, trazendo luz aos diversos modos de vida e de vivenciar e criar cultura (Hall, 2006).
Apesar da história da globalização ter tido uma influência primariamente ocidental e especialmente eurocêntrica para as nações da periferia, na contemporaneidade, “embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente” (Hall, 2006, p. 97).
Ao pensar em um caminho com possibilidade de insubordinação, Santos (1987) discorre sobre o desaparecimento da organicidade do estabelecimento das relações sociais, que indica também oportunidade de reverter essas questões, sobretudo ocupando espaços públicos que foram “impunemente privados” pela perspectiva do consumo.
Nesse contexto, a Terapia Ocupacional pode intervir junto às comunidades, ocupando espaços não privatizados, abraçando um viés anticapitalista de equidade no acesso ao lazer, à participação social e à cultura pela população. Assim, é apreender como os impactos nas territorialidades também estão conectados com a vida em comunidade, em uma relação contínua de mudança — para mostrar que é possível subverter lógicas atravessadas pelas relações neoliberais da globalização perversa.
A Terapia Ocupacional como resistência: possibilidades
para produzir encontros
Compreende-se que a Terapia Ocupacional, ao atuar pelo e por meio do território e das relações comunitárias, tem o potencial de contribuir para a superação de lógicas neoliberais e individualistas, com a proposição de uma prática que fomente a vida em seu contexto e a partir das necessidades concretas, voltada “ao âmbito coletivo e adequada à dinâmica social dos sujeitos e grupos assistidos” (Bianchi & Malfitano, 2020, p. 630).
Segundo Oliver e Barros (1999), o profissional deve trabalhar para promover a emancipação subjetiva, relacional e social dos sujeitos, estabelecendo movimentos junto às pessoas que fomentem o envolvimento em ambientes próprios e compartilhados; em atividades de sociabilidade, experimentação, troca e expressão de projetos coletivos e individuais (não individualistas), mas que tenham a coletividade como ponto de alteridade.
Esse percurso pode dar parâmetros para uma atuação agregada por conhecimentos que problematizam as repercussões contemporâneas neoliberais no território e na comunidade, na procura por criar maior sensibilidade às diversas condições socioeconômicas e culturais da vida em comum.
Bianchi e Malfitano (2020) tratam sobre as definições de território e comunidade como subsídios para entender os modos de vida e as relações sociais. Desse modo, ao se reconhecer tais repercussões atreladas ao neoliberalismo e à globalização, o terapeuta ocupacional atua de forma eficiente em um processo de desinstitucionalização e desindividualização, com a intenção de uma práxis que tire das mãos do capital o segregador e desigual controle de oferta e oportunização de participação social, promovendo vivências coletivas no território, que considera:
O extravasamento do setting terapêutico fechado e institucionalizado possibilitou ultrapassar também o escopo de atuação profissional, ampliando a atenção de sujeitos individualizados para sujeitos coletivos e de uma assistência pontual à dinamicidade e complexidade da vida cotidiana, ou seja, da inseparabilidade existente entre a singularidade do sujeito e dos grupos sociais e a história social que os constitui, abordando os processos socioeconômicos, políticos e culturais existentes. Para o terapeuta ocupacional, a proposição de uma ação territorial e comunitária pressupõe compreender os modos de vida dos sujeitos e das relações que eles estabelecem com o espaço em que vivem (Bianchi & Malfitano, 2020, p. 635-636).
Bianchi e Malfitano (2020) discorrem em uma compreensão da potência da atuação a partir do território, dessa forma, o profissional se posiciona em contato direto com a vivência cotidiana dos sujeitos, suas relações com a comunidade, redes e vínculos, compreendendo a complexidade, singularidade e a história da pessoa atrelada ao seu território. Esse é um caminho estratégico para fomentar a participação em ambientes próprios e públicos, na contramão da segregação espacial pela privatização dos espaços de participação social, como explicita Dowbor (2020). Tal abordagem seria dificultada a partir de uma visão exclusivamente institucionalizada da Terapia Ocupacional, enxergando o indivíduo por uma ótica limitada — que não abrangeria a vida cotidiana em seu território.
Logo, o pensar/fazer profissional deve compreender que a participação social é um direito, mas que nas lógicas de opressão ela é reduzida ao trabalho compulsório e incessante, sobretudo das populações economicamente mais vulneráveis, circunscritas pelo baixo acesso ao lazer pago, predominante na sociedade neoliberal. Por isso, é essencial fomentar a manutenção dos espaços públicos de socialização, quebrando esse modo de viver.
Além disso, compreender formas de subverter a globalização neoliberal é essencial, tendo em vista os processos que geram a desterritorialização da cultura, mas que também se incide de forma inevitável nas relações sociais contemporâneas (Han, 2019). Talvez a possibilidade esteja em compreender esse movimento e ressignificá-lo em um sentido da interdependência, e não da subalternização, trata-se de traçar caminhos, juntos aos sujeitos, que abram portas para a reinterpretação, variação, pluralização, diversificação, identificação e em acesso a culturas de forma crítica, tornando a manifestação cultural em constante mudança, abrangendo a população em diferentes nichos, grupos e coletivos.
Dessa maneira, o terapeuta ocupacional ao apreender as repercussões da globalização no território, não deve desconsiderar as influências desiguais produzidas pelas ordens dominantes — pautadas no neoliberalismo, na individualização, no consumo, na desregulamentação do mercado, no desmantelamento das políticas sociais e em todos os seus processos de exclusão social. Mas abarcar a globalização como uma marca da vida que acontece, e entendê-la em sua concretude em um mundo urbanizado e digitalmente conectado, aproveitando caminhos com potenciais para promoção de lazer, conexão e participação social entre as pessoas em um sentido problematizador, conscientizador e crítico, no sentido freireano (Freire, 1981).
Compreende-se as implicações na preservação de uma cultura local, mas também é possível reconhecer seu potencial de valorização da diversidade e pluralidade cultural — quando essa não é agenciada pela lógica neoliberal da subalternização e das imposições da globalização. Ademais, manifestações culturais praticadas em terras longínquas podem ser integradas na participação sociocultural de diferentes territórios de um país, e, dessa forma, promover coesão social. Há pessoas amantes de cosplays e animes do Japão, doramas da Coreia do Sul, dança do ventre do Oriente Médio, Yoga da Índia e também de esportes, jogos digitais e grupos musicais de diferentes lugares do mundo, e esses são exemplos pontuais de inúmeros outros que existem e podem coexistir em um mundo com relações interdependentes de solidariedade e respeito à diferença.
Essa questão também é discutida pela própria Terapia Ocupacional, dentro daquilo que é necessário reconhecer em suas relações locais e globais, fincada na pluralidade de vocabulários, histórias e culturas dentro da profissão, como discorre Malfitano (2022).
Assim, pessoas que, pelos mais diferentes motivos, apreciam práticas culturais de diferentes lugares do mundo, talvez, possam encontrar identificação em participação sociocultural em seu território, para agregar e dialogar com tais práticas, sendo o terapeuta ocupacional um agente que pode fomentar essas articulações.
A discussão relacionada às implicações macrossociais da globalização nesse texto pode ser interpretada como uma redução de danos ou ressignificação do que já foi causado pela globalização através da história na humanidade, mas ignorar esse processo é desconsiderar como a globalização já se enraizou e, inevitavelmente, já faz parte da vida das pessoas. Também cabe aos terapeutas ocupacionais lidarem com tal problemática em busca de caminhos outros.
Ao apreender os conceitos, como o hibridismo cultural, o profissional terapeuta ocupacional pode reconhecê-lo em sua atuação para enriquecer seu repertório em planejamento e aplicação de seus projetos de intervenção, ao favorecer o engajamento da população local ao acesso e também à construção de uma cultura orgânica, abraçando diferentes formas do participar socioculturalmente. Portanto, entende-se que a cultura de uma identidade nacional não é pura, mas plural, e em constante mudança e diversificação (Hall, 2006), quando rompe com as hegemonias que assolapam seus potenciais. Com base em Farias e Lopes (2023), para superar as lógicas neoliberais e de globalização perversas:
A dimensão social objetiva e concreta, que se consolida na estrutura social, precisa tomar lugar numa práxis terapêutico-ocupacional que se quer social e vai de encontro aos movimentos que tentam negar (pela força ou pelo consenso) nossa ação comprometida com a antiopressão e com a transformação social. (p. 8)
Em suma, isso envolve compreender a lógica individual-coletiva e territorial-comunitária das intervenções, sem reproduzir armadilhas individualistas e reconhecendo o sujeito social.
Considerações finais
A Terapia Ocupacional, enquanto profissão com potencial de extrapolar o setting que se restringe a clínica tradicional, fomentando uma atuação através da perspectiva territorial-comunitária (Bianchi & Malfitano, 2020), pode contribuir com o repertório de conhecimentos e práticas nas implicações do neoliberalismo e da globalização na participação social dos sujeitos.
Dessa forma, ao considerar os desafios e as potencialidades para a promoção de participação social e cultural, este texto buscou oferecer subsídios para a Terapia Ocupacional de forma problematizadora, demarcando a importância de uma atuação que se afasta de um modelo institucionalizado, acrítico e individualista, com base na ação territorial e comunitária.
A partir de uma abordagem territorial e comunitária, conhecendo as pessoas que integram a prática profissional, pode-se entender como utilizar a pluralidade cultural como promotora de participação social, sendo a cultura e os encontros recursos que conectam os sujeitos e os consolidadores de redes de cuidado, que transgridam a globalização neoliberal, para favorecer um movimento de resistência contra-hegemônica por meio da coesão social (Santos, 1996).
Logo, ao reconhecer o potencial dos encontros orgânicos, o terapeuta ocupacional terá um repertório mais rico e crítico para a atuação, bem como poderá realizar um trabalho interessado na transformação social.
Contribuições dos autores: Hoffman Miranda de Oliveira: conceitualização do estudo, escrita - esboço original, curadoria de dados, investigação e recursos. Magno Nunes Farias: metodologia, administração do projeto, recursos, validação, visualização, escrita - revisão e edição do estudo. Grasielle Silveira Tavares: administração do projeto e supervisão. Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G.
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G.
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G.
Miranda de Oliveira, H., Nunes Farias, M. y Silveira Tavares, G.
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Referências